No dia em que se assinalam 10 anos da morte de Manuel António Pina, o escritor Álvaro Magalhães recorda, a pedido do "Jornal de Notícias", o seu amigo de longa data.
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"Há dez anos que ficámos sem Manuel António Pina. Porém, sinto que ele nunca deixou de andar por aí, na memória e no coração de todos os que o conheceram, e também dos seus muitos leitores, seja da poesia, da literatura infantil ou das crónicas que publicava no JN e que faziam com que muitos começassem a leitura do jornal pela última página.
Ele deixou-nos uma das obras literárias mais originais do seu tempo. Por um lado, fundou a modernidade na literatura infantil, abrindo um caminho luminoso que tantos e tantos usaram e continuam a usar. Por outro, criou uma obra poética única, pelo fulgor imaginativo, pelo inusitado movimento das frases poéticas, mas, principalmente, pelo domínio criativo da língua, com toda aquela invenção sintáctica e lexical. Na verdade, a sua poesia é todo um modo de refazer a linguagem. Essa obra singular nasceu da intimidade que existia entre ele e as palavras, uma história de amor que começou na infância, quando - dizia ele - brincava com elas como se fossem brinquedos. Com o tempo, a brincadeira, que, aliás, nunca cessaria, fez-se também intimidade e coincidência. Para ele, as palavras eram bem mais do que signos, eram «seres deste mundo, insubstanciais, também eles incapazes de compreender, falando desamparadamente diante do mundo». E as palavras estariam sempre no centro da sua vida, que foi uma vida de palavras. Tal como Jorge Luis Borges, ele poderia dizer: «Encontrei alegria em muitas coisas - nadar, escrever, contemplar um pôr-do-sol, apaixonar-me, etc., mas o facto central da minha vida tem sido a existência de palavras e a possibilidade de as tecer em poesia.»
Porém, Manuel António Pina não foi apenas um bom escritor, foi também uma boa pessoa, o coração cavalgando sempre muito à frente da razão. Quando era pequeno, dizia que queria ser santo e ia a rezar de casa até à escola, para investir nessa santidade. Claro que não chegou a tanto, pois ninguém é santo, mas talvez esse ingénuo desejo infantil estivesse na raiz da sua genuína bondade".