Rui Lage, autor do ensaio "A presença do mistério - introdução à poesia de Manuel António Pina", destaca a "unidade assombrosa" da sua obra. Poeta morreu há 10 anos.
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"Estética de um só esteta", é como Rui Lage define, no livro "A presença do mistério", a poesia de Manuel António Pina. Editada pela exclamação, a obra vai ser apresentada neste sábado, às 16 horas, na Biblioteca Almeida Garrett, no Porto, com a leitura de poemas e atuações da companhia Pé de Vento e d'O Bando dos Gambozinos.
Intitula o seu ensaio sobre a poesia de Manuel António Pina de "A presença do mistério". Crê que, apesar dos vínculos estabelecidos com o leitor, estamos de certo modo perante uma poesia que nunca se deixa apreender ou captar na sua totalidade, conservando essa aura de mistério?
Vai muito além de uma aura. O mistério é algo de constitutivo na poesia de Manuel António Pina. O título do meu ensaio foi, aliás, colhido numa entrevista sua, onde ele responde ao entrevistador que "há uma forma de reconhecimento, na poesia, que tem que ver com o mistério. Não é propriamente uma busca do mistério. É uma presença do mistério". Evidentemente, o que está aqui em jogo não é o mistério na sua aceção religiosa, mística, cultual, mas um mistério que está presente de um modo familiar, doméstico. O mistério do ser e o mistério do estar. Em Pina, o que realmente importa não é o que se pode conhecer mas aquilo que não se pode conhecer. E aquilo que não se pode conhecer, não se pode conhecer porque as palavras não chegam. Toda a sua poesia alude a um autêntico que está fora das palavras e, portanto, fora da poesia. O máximo a que esta pode aspirar é apontar para esse algo. Um algo do qual estamos simultaneamente muito perto e muito longe.
Assinala que Manuel António Pina trouxe para a poesia portuguesa elementos ou correntes subrepresentados, a começar nas questões filosóficas. A partir desse esforço de Manuel António Pina, pensa que a poesia portuguesa contemporânea passou a estar mais atenta a essa dimensão do pensamento?
Não me parece que a revisitação dos velhos temas metafísicos por ele levada a cabo tenha servido de bússola a quem quer que seja. Porque ele fê-lo de forma tão anómala, tão rara, tão acrónica, que qualquer tentativa de o emular resultaria ilegível, senão mesmo risível. A obra poética de Pina não deixou epígonos, é incontestável. Quanto à dimensão do pensamento - se por pensamento nos referimos ao pensamento filosófico - foi praticamente evacuada da poesia portuguesa contemporânea. Pelo menos da que conheço.
Apesar da densidade metafísica, esta não é uma poesia desligada do quotidiano. Diria que esta é uma das principais singularidades?
Longe de ser a única singularidade, é, de facto, aquilo que a faz entrar em ressonância com tantos leitores. As velhas questões metafísicas surgem (quase) sempre ancoradas no quotidiano. Arnaldo Saraiva usou a expressão "metafísica do quotidiano". Ao mesmo tempo, julgo que o quotidiano é sobrevalorizado nas apreciações que esta poesia tem suscitado, muito por culpa de uns quantos poemas admiráveis, mas muito rodados. Estamos, afinal, a falar de um quotidiano minimal. Umas penadas de quotidiano: a casa, os livros, o quarto... A poesia de Pina não é descritivista, nem diarística, nem enumerativa. Não é uma poesia da experiência, da flânerie, da observação. Ela é, na verdade, a antítese de uma poesia do real, porque o real é nela, de todas as coisas, a mais duvidosa, a mais inconsistente, a mais impermanente. Desse ponto de vista, ela encaixa numa tradição muito antiga, que vem dos pré-socráticos, e cuja intuição mais frutífera é a de que não podemos conhecer a realidade mas apenas aquilo que desta aparece aos nossos sentidos, e que a realidade e a aparição dela podem não ser - ou, muito provavelmente, não são - a mesma coisa. Mas também não é uma poesia abstrata. É de outra lavra.
A ideia de cansaço ou saturação a vários níveis atravessa muitos dos poemas. Em que sentido a ironia a que recorria com frequência ajudava a diluir esse lado mais sombrio?
Há poucas coisas mais sombrias, em Pina, do que a sua ironia. Se nele o próprio cansaço é uma ironia... e a literatura "uma coisa escura/ de ladrões que roubam a ladrões"... É uma ironia terrível, porque projeta a sombra imensa da linguagem na própria linguagem.
Mesmo para um leitor tão atento da poesia de Manuel António Pina há muitos anos, como é o seu caso, a escrita deste ensaio fê-lo repensar algumas convicções que tinha acerca da sua escrita?
Não.
Colocando em confronto o primeiro e último livro, separados por 37 anos, encontra mais permanências ou o seu oposto?
Não sei se foi ao Álvaro Magalhães que ouvi dizer que a poesia do Pina saiu madura, perfeitamente formada, logo ao primeiro livro. Concordo. E se é verdade que os primeiros livros foram confessadamente escritos sob a influência de Lao-Tsé e de Nietzsche, e se é verdade, também, que, nos livros posteriores, a elipse vai passando à reserva e há um acréscimo de legibilidade, é tudo "da mesma substância". E não só a poesia, já agora, como a ficção e o teatro. A obra de Pina é de uma unidade assombrosa.
Foram precisos 25 anos para que a poesia de Manuel António Pina começasse a gerar maior atenção. Ter começado a publicar na Assírio & Alvim explica por si só essa transformação?
Julgo que os críticos nunca souberam muito bem o que fazer com uma obra que era uma anomalia, relapsa a qualquer categorização ou arrumação, simultaneamente pós-moderna e pré-moderna e que, como se não bastasse, em vez de passar ao largo do continente pessoano, conjurava, às claras, o fantasma de Pessoa, tornando-o uma presença familiar. Custa-me a acreditar que não tivesse havido uma intuição alargada da sua superioridade. Provavelmente, essa superioridade causava desconforto. Até porque, em vários poemas dos primeiros livros, a sabedoria surgia em modo quase lúdico. Depois, é preciso ver que a poesia de Pina não estava só nos seus livros de poemas: estava na sua dramaturgia, estava na sua ficção - que nos devemos recusar a denominar de infantil - estava nas suas crónicas. Portanto, é provável que houvesse já um crescendo e que a sua poesia acabasse por surgir nas montras, mesmo sem a Assírio. Mas que a chancela ajudou, é evidente que sim.
Em termos académicos e ensaísticos, a obra de Manuel António Pina tem despertado uma atenção crescente, de que é exemplo a sua tese/livro. Todavia, quais as dimensões e facetas da sua obra que, em seu entender, continuam a carecer de um estudo mais aprofundado?
A exegese da obra do Pina é virtualmente interminável. E é-o precisamente pela sua dimensão metafísica, especulativa, dubitativa, interrogativa. Não é uma poesia circunscrita, contextual, epocal. Não observa os códigos do período, mas antes faz a mineração profunda de códigos de vários períodos. A beleza do mistério, se quisermos, é que, num verso de Pina, "o Mistério não pode ser ocultado nem revelado". Se revelado, cessa de ser mistério; ocultado, não é possível removê-lo, ficamos em face dele. Mas há um aspeto no qual a crítica nunca tinha tocado, até à saída do meu livro: o influxo da física quântica e da astrofísica, implícita e explicitamente, e que é toda uma outra presença do mistério. Ou melhor, é a continuação do mistério por outros meios.