António da Cunha Telles, produtor, realizador e distribuidor, faleceu nesta quinta-feira, deixando uma obra vasta e meritória. Tinha 87 anos.
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Conheci o António da Cunha Telles em finais dos anos de 1970. Jovem cinéfilo, fundador de um clube de cinema em Económicas (atual ISEG) e dinamizador de sessões de meia-noite e clássicas no Nimas e no Quarteto, estava na dependência da Animatógrafo, ao tempo a mais importante distribuidora de cinema de autor em Portugal, a quem se deve a chegada até nós de filmes de Eisenstein, Glauber Rocha, Oshima, Tanner e tantos, tantos outros.
Eram pois frequentes as idas ao escritório da Animatógrafo, na Duque de Loulé, onde estava sempre a esposa do António, a Renée Gagnon, e onde ele próprio muitas vezes se encontrava. Recordo conversas cinéfilas e de como bebia avidamente tudo o que ele dizia, tudo o que ele sabia.
A última vez que vi o António da Cunha Telles foi na ante-estreia de "O Homem Que Matou Dom Quixote", produzido pela Pandora da Cunha Telles, uma força da natureza como o pai. E a última vez que pronunciei o seu nome foi há algumas semanas, em Berlim, ao apresentar a cópia nova de "Belarmino", de 1964, uma das suas primeiras produções, aproveitando para contar como o António e o Fernando Lopes tinham saído do Ribadouro, na Avenida da Liberdade, para o Parque Mayer, para convencer o Belarmino Fragoso a fazer o filme.
O Cunha Telles começava, sem o saber ainda, a tornar-se uma das figuras mais importantes de toda a história do cinema português, depois de no ano anterior ter produzido o primeiro Paulo Rocha, essa outra obra capital que se chama "Os Verdes Anos". Nesses dois filmes, um retrato de uma Lisboa que já não existe e de um país a pedir por mudança.
António da Cunha Telles tinha nascido no Funchal, a 26 de fevereiro de 1935. Estudou Medicina em Lisboa mas virou-se cedo para o cinema. Instalou-se em Paris, a meio da década de 1950, terminando o curso de realização do IDHEC (hoje La Fémis), uma das escolas de cinema mais antigas e importantes do mundo.
De regresso a Portugal, dirige o jornal de atualidades Imagens de Portugal, chefia os serviços de cinema da Direção-Geral do Ensino Primário, dá aulas de cinema na Mocidade Portuguesa e estreia-se na realização com o documentário "Os Transportes".
O seu sonho era assegurar uma produção contínua em Portugal. "Os Verdes Anos" e "Belarmino", hoje sem qualquer favor clássicos do cinema mundial, não tiveram no entanto os resultados esperados. Cunha Telles ainda produz o Cine-Almanaque e dirige a sua primeira longa-metragem, outro título fundamental do cinema português, "O Cerco", marcado pela presença luminosa de Maria Cabral e pelas angústias de uma pequena burguesia intelectual no beco sem saída que era Portugal.
Cunha Telles realiza de rajada "Meus Amigos" e "Continuar a Viver", já depois do 25 de Abril de 1974, oferecendo depois a sua experiência à direção do Instituto Português de Cinema (hoje ICA) e à Tobis Portuguesa, antes de retomar o que seria então uma incessante carreira de produtor.
Desde então, produziu obras de Eduardo Geada, José Fonseca e Costa, José Álvaro Morais, Margarida Gil, João Botelho, Seixas Santos ou António-Pedro Vasconcelos. Foi responsável por um histórico ciclo de telefilmes da SIC, iniciado no ano 2000 com "Amo-te Teresa". E foi produtor-coprodutor ou produtor executivo de dezenas e dezenas de filmes, telefilmes e episódios de séries de televisão realizados por estrangeiros.
Cunha Telles está ligado, entre tantos outros títulos, a "Belle Epoque", do espanhol Fernando Trueba, vencedor do então chamado Óscar de Melhor Filme Estrangeiro. E, ao receber a estatueta, os espanhóis não se esqueceram de agradecer aos seus parceiros portugueses. É também dele a parte portuguesa de "La Peau Douce", de François Truffaut e de "Rua Sem Regresso", o último filme de Samuel Fuller!
Ainda dirigiria "Vidas", "Pandora" e "Kiss Me", deixando por terminar o seu mais recente projeto, "Cherchez la Femme". Nunca mais ouviremos aquela voz tão característica, com um cerrado sotaque madeirense que nunca perdeu. Mas sempre que virmos um filme, o António estará entre nós.