Estreia na quinta-feira "Três andares", o último filme do realizador italiano. Fala de culpa, justiça, e da dificuldade de ser pai.
Corpo do artigo
Vinte anos depois de "O quarto do filho", Nanni Moretti volta a trocar o seu habitual humor pelo drama humano no pungente "Três andares", onde cruza várias histórias do mesmo prédio de um bairro de Roma. O italiano adapta pela primeira vez um romance, no caso do israelita Eshkol Nevo, mas mantém-se fiel ao seu cinema, que o tornou um dos autores mais respeitados das últimas décadas. Ainda em Cannes, onde o filme se estreou, Moretti falou ao JN.
Pode dizer algo sobre o bairro onde rodou o filme, há alguma razão precisa para ter sido ali e não em nenhum outro local?
Quando andei à procura de local para filmar considerei todos os bairros de Roma. Não tinha nenhum específico em mente. O que precisávamos era de encontrar uma casa que pudesse ser usada como um estúdio. Esta casa que encontrámos tinha sido uma escola e estava vazia. Deitámos abaixo e construímos paredes e mobilámos os apartamentos que precisávamos.
Foi a primeira vez que adaptou um livro. Tornou o trabalho diferente para si?
Não me senti diminuído como autor. Sinto-me muito feliz por ter descoberto este belo romance, que tocava em temas que me interessava muito abordar: a culpa, a justiça, as consequências dos nossos atos. O tomar a responsabilidade pelas nossas ações, os conflitos familiares, a dificuldade de ser pai. Tudo isto me interessava contar e aprofundar.
As personagens do seu filme pertencem à classe média, muito influenciada pela situação económica e social e pela pandemia.
O filme não só foi escrito e filmado como foi também montado e terminado antes do início da pandemia. A dinâmica e os conflitos que conta não dizem respeito apenas à classe social a que pertencem estas personagens. E mesmo que o filme se passe em Roma podia passar-se em qualquer outra cidade europeia.
Porque decidiu interpretar a personagem do juiz?
Aquela personagem tem uma ideia absoluta da justiça e eu tenho uma dupla perspetiva sobre a personagem. Dois pontos de vista diferentes, o meu enquanto ator e o meu enquanto realizador. Como ator, tento compreender as suas razões e meter-me na sua pele. Como realizador, julgo-o, e julgo-o excessivo na sua dureza.
O filme segue a estrutura temática do livro ou é uma adaptação mais livre?
O que fiz foi enfrentar os temas que o livro abordava, mas com muitas alterações na estrutura narrativa. O livro era composto por três contos independentes. Na escrita do argumento juntámos as três histórias, criando um arco temporal de dez anos que não existia. A estrutura do livro não podia ser reproduzida no cinema. Eram três histórias contadas na primeira pessoa a outra pessoa.
A fragilidade das relações familiares é uma das suas obsessões?
Não é uma obsessão, é um interesse humano. É algo que quero investigar, compreender e narrar.
A cena no centro de refugiados reflete o seu interesse mais político sobre a nossa realidade. Já estava no livro?
No livro o que havia era uma manifestação contra o custo de vida, em Telavive. Não fazia sentido reproduzi-la em Itália. A cena do ataque ao centro de refugiados é uma invenção do argumento. É um tema difícil de ignorar hoje na Europa.
Foi difícil esperar mais de um ano, até 2021, para mostrar o filme em Cannes?
Se há dois anos me dissessem que ia ter um filme pronto e o tinha de deixar no congelador durante ano e meio, teria respondido que não, nunca o faria. Mas reagi com um certo desportivismo. E aproveitei para escrever outro filme, que começarei a rodar em fevereiro ou março do próximo ano.
Não teve ofertas das plataformas para mostrar entretanto o seu filme?
Neste ano e meio pedi aos produtores para não me dizerem os números que as plataformas ofereciam, a Amazon, a Netflix, a Disney. Não queria saber, estava à espera que os cinemas reabrissem. Não falo como realizador, produtor, ator ou proprietário há 30 anos de um cinema em Roma, falo como espectador. Não consigo imaginar a minha vida sem ver filmes numa sala de cinema.
Como é que reagiu ao facto do filme ter sido exibido em Cannes durante a final do Euro entre Itália e Inglaterra?
E também havia a final de Winbledon, com um italiano. Mas consegui ver os penáltis no telefone de um dos atores.
Pode saber-se alguma coisa sobre o seu novo filme?
É uma comédia passada hoje em dia e que é difícil e cara de fazer. Mas apesar de os meus filmes serem considerados difíceis, até agora nunca fiz perder dinheiro aos meus financiadores e aos meus produtores.
Acredita na felicidade?
Acho que há alguns afortunados. E não acredito numa vida para lá desta. Faz-me impressão que hoje em dia ninguém diga que é ateu, diz-se que se é laico, Não acredito que haja qualquer forma de vida além da que vivemos na Terra. Então a vida não tem sentido? Tem o sentido que nós lhe damos.