Ícone da música popular dos séculos XX e XXI atua esta sexta-feira no Coliseu do Porto em concerto esgotado. Lisboa recebe-o domingo e segunda-feira, no Campo Pequeno.
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Bob Dylan reverbera há demasiado tempo para se falar de um concerto. Será mais um encontro com a história, como visitar uma catedral ou observar um monumento. Pensemos que o homem tinha fãs durante a crise dos mísseis de Cuba, em 1962. Que foi voz icónica do movimento dos direitos civis nos EUA. Que foi visto como traidor desses movimentos. Que continuou a fazer a sua música, alheio ao rótulos que lhe iam pondo e inovando sempre a cada trabalho, durante a queda do Muro de Berlim, durante o 11 de setembro, durante a marosca do subprime, durante a pandemia, e lança hoje, 2 de junho, no dia em que atua no Coliseu do Porto, "Shadow kingdom", o seu 40.º álbum de estúdio, com a guerra na Ucrânia a fumegar no horizonte.
Tudo cabe no peito de Dylan, agora com 82 anos, e com uma voz que o JN descreveu, em 2018, quando se apresentou na Altice Arena, em Lisboa, como "tom roufenho envolvido por uma nuvem de graves que lhe dá ainda mais alcance. A voz estilhaça-se e reconstitui-se, desaba e volta a erguer-se". Muitos levaram a mal a falta de comunicação com o público nesse concerto. Dylan entrou, sentou-se ao piano e cantou. No final, voltou as costas e desapareceu. Nem olá nem adeus.
Dylan faz o que quer
Mais uma vez: é preciso olhar para o único homem que decora a estante com um Nobel da Literatura, um Oscar, um Pulitzer, um Globo de Ouro e uma catrefada de Grammys, não como o músico simpático do momento, que distribui mensagens e salamaleques, mas como uma entidade histórica, devendo ser suficiente estar diante dela.
Dylan faz o quer nos seus concertos, como sempre fez o que quis em toda a carreira. Analisa-se o alinhamento dos espetáculos mais recentes da digressão "Rough and rowdy ways", ocorridos em abril, no Japão, para tentar antecipar a noite de hoje.
Constata-se que há poucos clássicos - daqueles que todos ouviram mesmo que não saibam o nome: "Like a rolling stone", "Mr. tambourine man", "Blowin" in the wind", "A hard rain"s a-gonna fall". Com pequenas variações, todos arrancam com "Watching the river flow", canção de 1971 que é uma das 14 de várias épocas que Dylan relê no álbum hoje lançado.
A sequência é dominada pelos temas de "Rough and rowdy ways", de 2020, álbum que analisa a turbulência da história americana desde o assassinato de John F. Kennedy, em 1963, e que termina com esse fresco monumental de 17 minutos que é "Murders most foul", tema polvilhado com mais de 70 referências a músicas e filmes e que diz que a América entrou em declínio com aquele disparo de Lee Harvey Oswald. Curiosamente, essa faixa não consta de nenhum espetáculo recente. Seria um presente especial para a Invicta.
Há revisitações pouco habituais, como "Gotta serve somebody", do álbum de 1979 "Slow train coming", ou "Most likely you go your way and I"ll go mine", de "Before the flood" (1974).
Há uma canção suficientemente orelhuda para ser reconhecida: "I"ll be you baby tonight", de 1967. E há duas "covers" que surgem com insistência: "The old black magic", de Johnny Mercer; e "Brokedown palace", dos Grateful Dead.
Há tudo isto, mas não garantimos que nada disto se repita no Coliseu. O que é seguro é a presença de todos os veios da origem do rock"n"roll: country, rhythm & blues e folk pela sua mão magistral.
Lisboa ainda tem bilhetes
Depois do Porto - concerto esgotado -, Dylan atua ainda em Lisboa, no Campo Pequeno, no domingo e na segunda-feira - e ainda há bilhetes.
Dylan passará quase uma semana em Portugal. Mas não estão previstos, aparentemente, encontros com dignitários nacionais. O compositor sobrevoa a espuma dos dias e as figuras da conjuntura. Está já inscrito no cânone. E aguarda-o a eternidade. Aproveitemos o privilégio.