Os DJ deixaram de atuar, as pessoas não dançam juntas e a catarse através do movimento do corpo está adiada. Restrições prejudicam relações e comunidade.
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"Estabelecer ligação pela música é algo mágico e os clubes noturnos são dos últimos redutos de experiência humana e social". Quem o diz é Filipe Galante, DJ e programador do Plano B, um dos clubes de música eletrónica mais concorridos do Porto, antes da pandemia. Essa magia, ou a falta dela, é apenas um dos itens apontados por vários DJ nacionais como consequência das medidas de combate à covid-19, que desde março inviabilizaram a possibilidade de funcionamento desses locais e privaram toda a população dessa coisa tão simples e necessária - ir ouvir música e dançar.
Refira-se, desde logo, que nenhum dos profissionais contactados considera que este seja o momento oportuno para reabrir os espaços onde trabalhavam, apesar de vários referirem o exemplo de Berlim, onde foram ensaiadas medidas como os testes rápidos à entrada dos clubes. Mas também há a consciência de que a situação não poderá arrastar-se indefinidamente: "Mais cedo ou mais tarde, terá de haver uma reunião com a DGS para se estudar e definir algumas normas razoáveis, porque há demasiada gente a viver disto", alerta António Pereira, conhecido como DJ Vibe, um dos produtores e DJ portugueses mais consagrados internacionalmente.
Evitar o clímax
Não parecendo, para já, ser prioridade das autoridades encontrar essas soluções, aos DJ foi-lhes sendo possível, durante o verão, pequenas sessões de final de tarde e início de noite, "sessões diferentes, sem puxar muito pelas pessoas", diz DJ Vibe, "uma coisa quase contranatura, de tentar evitar que se atingisse o clímax", reforça Pedro Tenreiro, outro produtor e DJ que circulava por bares e clubes de todo o país. Reduzidos agora à expressão mínima, no que toca ao seu trabalho ao vivo (aumentaram, por outro lado, as iniciativas em podcast e live streaming), vão elencando as consequências da sua ausência na sociedade.
Para Tenreiro, "o lazer é tão necessário como o sono e há coisas que não consegues fazer virtualmente, como partilhar um conjunto de sensações enquanto se dança." Miguel Quintão, que viu a sua atividade de girar pratos resumida aos programas de rádio, encara a noite de um ponto de vista profissional, mas reconhece que é algo de essencial para a vida das pessoas, "porque dançar limpa a negatividade e é a melhor forma de passar para outros paralelos." Recorda ainda que não se trata só da falta da música de dança, mas também dos concertos que eram realizados em muitos destes locais, alguns deles "verdadeiras casas de espetáculos".
Rotina terapêutica
Essa diminuição do acesso à cultura é salientada por Pedro Rodrigues, sócio e programador do Gare, outro célebre clube do Porto que fechou portas em março: "Há uma perda social e artística, as pessoas deixam de estar atualizadas com a música que se faz, com os novos artistas. E perde-se, claro, toda a comunhão e celebração que existe numa pista de dança." Perde-se, inclusive, "a própria ideia de diversão que associávamos a uma sexta ou sábado à noite", diz Rodrigo Affreixo, jornalista e notívago há quase 40 anos, cujo trabalho enquanto DJ representava um "complemento importante" no seu orçamento: "foi uma mudança brusca, e de momento não se vê dança ao fundo do túnel. Sair é importante por uma questão terapêutica: há uma evasão, um esquecimento da rotina diária. E um lado convivial que agora desaparece: deixas de ver certas pessoas que só encontravas na noite, e também não conheces pessoas novas".
Como nota positiva, fica o consenso entre os DJ de que a música eletrónica não parou de ser produzida, "poderá até ser um ano vintage", diz Pedro Tenreiro. E a oportunidade, segundo DJ Vibe, de "repensar todo o funcionamento da noite, que já não é atualizado há mais de 20 anos."