Três curtas-metragens co-realizadas por cineastas nortenhos apresentadas no festival de Cannes
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Secção oficial paralela de Cannes, criada após os acontecimentos de Maio de 68, que levaram ao cancelamento do festival, já após a sua abertura, a Quinzena chama-se agora "des Cinéastes". Em francês, o artigo é indefinido quanto ao género, substituindo assim a versão anterior, chamada "des Réalisateurs", assim no masculino. Para se ser mais correto, o evento deveria então chamar-se, na nossa língua, Quinzena dos e das Cineastas.
Com uma ou outra denominação, a Quinzena abriu com o excelente "L"Affaire Goldman", de Cédric Kahn, sobre o caso que apaixonou a França na segunda metade da década de 1970, com o julgamento de Pierre Goldman, acusado não só de vários assaltos como de, num deles, ter assassinado duas mulheres. Não revelando aqui qual a conclusão do caso, o filme de Kahn coloca-nos em pleno espírito da época, entra diretamente para a lista dos bons filmes de tribunal da história do cinema e revela-nos um brilhante ator, Arieh Worthalter.
Mas a Quinzena deste ano fala-se em português. Com Leonor Silveira no cartaz, visível por toda a cidade, antecipando para já a projeção, na próxima segunda-feira da cópia restaurada de "Vale Abraão", de Manoel de Oliveira, a Quinzena, que tem ainda a seleção e "Légua", de Filipa Reis e João Miller Guerra, teve também no seu início a exibição dos filmes da Factory, que em cada edição, desde há alguns anos se dedica a um território cinematográfico, não necessariamente um país.
Assim, em 2023, é o Norte de Portugal que surge em destaque em Cannes, com três curtas-metragens correalizadas por um ou uma cineasta da região e um ou uma de outra nacionalidade, numa coprodução do Bando à Parte, de Rodrigo Areias, sediada em Guimarães e da francesa DW Productions.
Segundo Rodrigo Areias, que assinala que "o cinema português tem estado no radar internacional nas várias décadas de uma forma consistente, mas com produções maioritariamente oriundas da capital do país", este programa tem como objetivo "abrir uma porta internacional para a região do norte de Portugal, de forma a desenvolvê-la em termos de produção cinematográfica", trazendo para primeiro plano "o maior número possível de novos realizadores, produtores e atores da região".
O primeiro filme do programa, que também tem Leonor Silveira como madrinha, chama-se "Espinho", e foi realizado por André Guimar e pela israelita Mya Kaplan. Um espinho na mão de um jovem adolescente vai ligá-lo a um padre recém chegado de Moçambique. Apostando num tema complexo, dada a realidade dos abusos cometidos por alguns membros da igreja católica, o filme deixa-nos sempre na dúvida se o encontro estes dois seres é apenas do domínio do espiritual ou vai passar para uma componente corporal e física. Os dois realizadores são capazes de manter essa tensão e esse "suspense" até ao fim.
"Maria", de Mário Macedo e do iraniano Dornaz Hajiah, acompanha a personagem central, que dá o título ao filme, e que vive entre o trabalho na metalúrgica da família e do acompanhamento de uma cunhada e sobrinha depressivas, mas que uma visão de natureza religiosa irá operar uma revolução na sua vivência.
O programa conclui-se com "As Gaivotas Cortam o Céu", de Mariana Bértolo e do espanhol Guillermo Garcia López. Rodado a preto e branco, o filme segue a relação amorosa entre duas mulheres, a dona de um restaurante de uma região piscatória, condenado a desaparecer, mas que Clara se recusa a vender, a uma jovem que trabalha num navio de cruzeiros e a tenta convencer a juntar-se-lhe em Nova Iorque. De longe o mais sólido dos três filmes, as sublimes cenas de sexo entre as duas protagonistas, Sandra Salomé e Constança Carvalho Homem têm a mesma sensibilidade que o resto do filme, um retrato de um período nas nossas vidas e uma bela história do encontro entre dois seres, marcado pela lendária fatalidade portuguesa.
Os autores destes filmes terão ainda a possibilidade de apresentar junto de produtores e distribuidores internacionais os seus primeiros projetos de longa-metragem.