Realizador turco Nuri Bilge Ceylan fala ao JN de “As Ervas Secas”, um dos grandes filmes do ano que agora findou.
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O ano cinematográfico terminou em grande, com a estreia de um dos filmes do ano, “As Ervas Secas”, do turco Nuri Bilge Ceylan, autor de obras como “Uzak – Longínquo”, “Climas”, “A Pereira Brava” ou “Sono de Inverno”, que lhe valeu a Palma de Ouro de Cannes.
Vencedor agora no festival francês do prémio de interpretação feminina, atribuído a Merve Dizdar, o filme assinala o regresso do realizador à região onde já filmara “Era Uma Vez na Anatólia”. Agora, conta a história de um professor de uma escola isolada que se vê envolvido num escândalo com uma aluna de 14 anos. São mais de três horas de muito bom cinema, a não trocar por nenhum streaming deste mundo.
Porque deixou de novo a cidade e logo para um local onde não deve ter sido fácil filmar?
Não sei, foi só uma coincidência. Não havia nenhuma estratégia. Descobri esta situação e gostei da história. É assim em todos os meus filmes, gosto de sublinhar a paisagem que rodeia as personagens.
Mas este regresso à Anatólia, a fuga de Istambul, tem algum significado político?
Não, de todo. A minha infância foi passada na província, conheço aqueles lugares muito bem, como conheço muito bem a vida na cidade. E as pessoas que lá vivem. Por isso, é-me indiferente onde filmo. Por exemplo, há muita gente da Anatólia que vive em Istambul. Essa é outra história, outra cultura.
Como é que descobriu esta história?
A história é vagamente inspirada no diário e nas notas de um dos argumentistas. Depois de escrever comigo o guião de “A Pereira Brava” foi trabalhar três anos para a Anatólia e escreveu um diário. Quando o li gostei, mas não quis logo fazer um filme sobre esse texto. Não queria fazer outro filme sobre um professor.
Porque razão mudou então de opinião?
O tempo passava e não conseguia esquecer-me de alguns detalhes. Um dia forcei-me a começar a escrever um guião, ainda sem ter nenhuma certeza. Mas começa-se a criar alguma coisa e começa-se a gostar. O guião era enorme. Os filmes têm a mesma duração, mas este guião tem o dobro do de “Sono de Inverno”. Filmei quase tudo, a primeira versão tinha cinco horas.
As suas imagens estão sempre imbuídas de um grande lirismo, mas parece estar cada vez mais interessado na palavra, no diálogo entre as personagens…
Os meus filmes são assim desde “Sono de Inverno”. Mas não quer dizer que vá continuar na mesma direção. Não planeio as coisas assim. Uma das razões que me levaram a fazer este filme foi a cena do jantar. Era uma passagem do diário que eu gostava muito. Na Turquia, os artistas são acusados de não serem suficientemente políticos. Esta conversa talvez pareça demasiado longa, mas é importante na Turquia.
Desta vez, acha que foi suficientemente político?
As pessoas vão dizer outra vez que não… Não gosto do discurso dos políticos, os valores que apregoam não me interessam. Mas, quando se faz um filme, deve-se ser forte nos dois lados, se possível. Tento colocar tudo em cima da mesa, as coisas boas e as coisas más.
As sequências onde se discute a hierarquia e as formas de promoção na escola não serão também uma forma de crítica política?
É claro que a hierarquia é muito importante no trabalho dos burocratas. Quando discutem entre eles, é o assunto mais importante. Ser diretor de uma escola é um cargo muito importante, houve sempre essa luta. Mas para mim o importante é a relação entre as pessoas, as disputas entre elas.
Apesar do professor ser o protagonista, a personagem feminina é muito forte no filme, tem uma importância muito grande na história…
Não disse a mim mesmo que ia criar uma personagem feminina forte. Foi assim que surgiu. Mas conheço uma mulher como esta. Perdeu uma perna na explosão de um bombista suicida em Ancara. Também estava nos diários, mas conheço-a. É uma pessoa muito forte, talvez pareça ainda mais forte devido ao que lhe aconteceu. Sempre olhei para ela com grande admiração. Por vezes, estes acidentes tornam-nos mais fortes.
Como é que escolheu a jovem aluna? Ela estava consciente de todas as implicações da história?
Estava, é uma jovem muito inteligente. Fizemos imensas audições, mas desde que a vi que gostei imenso dela. Foi a minha mulher que a encontrou. Alguns amigos a quem a mostrei não achavam que deveria ser ela, mas eu e a minha mulher insistimos. A sua mímica é muito particular. Mesmo na vida real é uma jovem muito interessante.
A relação entre ela e o professor é muito ambígua…
É um tema muito delicado. No filme percebe-se que não houve abuso, não houve nada de sexual. Mas aquela carta cria um certo vazio, que vai sendo preenchido. Há uma certa dúvida, que afeta várias pessoas.
De onde lhe veio a ideia de a certo ponto vermos que estamos no interior de um filme?
Falei aos outros argumentistas sobre esta ideia. Nenhum gostou muito e nunca mais lhes falei nisso nem a coloquei no guião. Ninguém sabia disto, a não ser o meu assistente. Filmei três cenas assim, em sítios diferentes. Deixei a decisão para a fase da montagem e achei que ficava melhor com esta cena do que sem ela. Há demasiadas emoções no filme, é bom quebrá-las por vezes um pouco. E é um pequeno jogo com o cinema.
As emoções interferem com a racionalidade do relato?
Achei que era o melhor momento, em função do arco narrativo do filme. O espetador de cinema ganhou determinados hábitos e eu quis abaná-lo nesses hábitos.
A duração dos seus filmes já é uma imagem de marca do seu cinema.
A duração de um filme não é um problema para mim. De qualquer forma, os meus filmes não são vistos por muita gente, nem mesmo os mais pequenos. Na realidade, os meus filmes mais longos são os que tiveram mais espetadores. Nunca penso na duração quando estou a preparar um filme. É claro que sinto a pressão dos distribuidores e dos exibidores.
Mas é uma decisão consciente mostrar uma sequência de diálogos com doze ou quinze minutos, em vez de cinco.
Claro que sim. Primeiro monto uma sequência da forma como gosto mais. Costumo discutir com minha mulher, que normalmente me diz para a tornar mais curta. Mas resisto-lhe. Gosto de desafiar o espetador, alargar os limites. Não estamos habituados a cenas longas de conversa, mas eu gosto. Se achasse que não funcionava, tinha cortado. Mas para mim funciona. Para algumas pessoas sei que não vai funcionar. Mas não podemos fazer filmes para todas as pessoas.
Há também um certo humor nos seus diálogos…
É assim que eu vejo a vida. Todos nós somos como crianças pequenas. Somos divertidos, por vezes incapazes. Prefiro dar atenção a pequenos pormenores. Não me interessa a ideia de que um homem possa ser comparado a um deus. No meio do meu pessimismo, encontro também coisas divertidas.
Porque escolheu o cinema para se expressar?
Se fosse suficientemente forte a escrever, teria preferido a literatura. Mas não sou. Gosto mais de ler do que ir ao cinema. O impacto de um livro na minha alma é maior do que o de um filme. Até agora, nenhum filme teve um impacto tão forte em mim que um livro de Dostoievski ou Tchekhov. As minhas capacidades são mais adequadas ao cinema. É verdade que nos primeiros tempos era um problema para mim ter de trabalhar com outras pessoas, mesmo que a equipa fosse mesmo muito reduzida, umas cinco pessoas. Mas agora já não me preocupa, mesmo que esteja rodeado por 50 ou 60 pessoas, concentro-me no meu trabalho. Habituamo-nos a certas coisas, é a vida.
Porque escolheu o cinema para se expressar?
Se fosse suficientemente forte a escrever, teria preferido a literatura. Mas não sou. O impacto de um livro na minha alma é maior do que o de um filme. Até agora, nenhum filme teve um impacto tão forte em mim que um livro de Dostoievski ou Tchekhov. As minhas capacidades são mais adequadas ao cinema. É verdade que nos primeiros tempos era um problema trabalhar com outras pessoas. Agora, mesmo rodeado por 50 ou 60 pessoas, concentro-me no meu trabalho. Habituamo-nos a certas coisas, é a vida.
O cinema fazia parte da sua infância?
Curiosamente, nesse tempo ainda não havia televisão, só tínhamos o cinema. Na pequena localidade onde vivia o cinema mudava de programa todos os dias. Na maior parte dos casos filmes turcos, imitações de Hollywood. Mas teve um grande impacto em mim. Três dias depois ainda queria ser o herói do filme que tinha visto.
Há alguma semelhança entre ser realizador de cinema e professor?
Nunca me senti como professor. Não tenho nada a ensinar. Eu próprio tento sempre aprender, ao fazer filmes. Nunca pedi a ninguém com um filme que pensasse como eu. Ideias opostas às nossas também são fortes. Para mim é importante a liberdade do espetador. Eu não tenho qualquer expetativa de mudar o mundo. O que faço é mais um desesperado grito de solidão que sinto dentro de mim. Já o disse antes, um realizador coloca uma carta dentro de uma garrafa e deita-a ao mar, sem saber se alguém a irá ler.
Em que sentido o cinema mudou a sua vida?
Sou alguém que se sente um estranho, neste mundo. Sinto-me assim desde a minha juventude. Nessa altura ainda era pior. Era um ser anti-social, sentia-me sempre sozinho. Era eu que estava mal, todos à minha volta estavam bem. Fazer filmes ajudou-me. Descobri algumas almas gémeas no mundo. Quando faço um filme penso que ninguém vai gostar. Mas depois fico surpreendido porque há sempre alguém que o compreende, que sente alguma coisa ao vê-lo. E é agradável. Mas não mudei muito.
Hoje é um dos cineastas mais apreciados em todo o mundo.
Não ligo nada a fama e coisas dessas. A vida é sempre algo de difícil, para mim, sem sentido. O que tento com a arte é encontrar algum sentido para a vida. O que tento criar é algo que se assemelhe ao que sinto quando leio um livro, o que é uma terapia para mim. Mas não ligo muito às reações aos meus filmes, há sempre milhentas. Escreve-se talvez demasiado sobre cinema. Não há tantos artigos sobre livros ou sobre pintura.