À boleia da viagem do cantor, Nuno Costa Santos navega também por águas pessoais no livro “Como um marinheiro eu partirei. Uma viagem com Jacques Brel”
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Quis Nuno Costa Santos indagar sobre si próprio ao mergulhar no universo de Jacques Brel? “Não será a biografia, para um escritor-biógrafo, uma forma de se apresentar através dos vestígios dos outros? Um modo de se adiar?”. Ou foi inevitável, para o autor açoriano, confrontar-se com questões pungentes da sua vida, como a relação com os filhos, ao percorrer a história do mais famoso cantor belga do século XX?
“Num trabalho biográfico, mesmo com as diferenças constitucionais entre o biógrafo e o biografado, o ímpeto da comparação é inevitável”. Pouco importa onde começou, porque a uma certa profundidade tudo se confunde: “Ver com lupa a biografia de alguém faz ressaltar aquilo que mais define os homens”. Eles todos.
O ponto de largada, porque se trata de uma viagem marítima, empreendida por um Brel cansado dos palcos e desejoso de dar a volta ao Mundo, é a passagem do flamengo, em setembro de 1974, pela ilha do Faial, onde atracou o veleiro Askoy II.
Ali recebe a notícia da morte do seu melhor amigo, faz uma nova amizade com Decq Mota, médico que auscultou o princípio do fim do autor de “La valse a mille temps”, conhece o ex-jornalista do JN Júlio Roldão, genro do médico, e estabelece diálogo com um vulcão: “Quando é que voltas aos palcos?” – “Quando voltares a entrar em erupção”. Tem ainda tempo para um concerto improvisado no Peter, famoso bar oceânico situado na Horta que acolhe marinheiros desde 1918.
Mas, tratando-se de uma peça rizomática, de várias centralidades, o livro foca-se não só em fragmentos da vida de Brel – notáveis os capítulos que explicam, entre a realidade e a ficção, os motes para canções como “Les vieux”, “Ne me quitte pas” ou “Amsterdam”; mas também nas dificuldades para a construção de “Brel nos Açores”, espetáculo criado por Nuno Costa Santos e Dinarte Branco que estreou em 2010; ou nas dúvidas sobre o que é a paternidade, para um homem de São Miguel que vive na Terceira e tem os três filhos em Lisboa.
De verbo contido e apurado, o livro rasga-se em vários momentos sob a pressão emocional que emana dos versos de Brel, sempre presentes. E num dos eixos está a celebração da amizade como “encontro desinteressado” em que nem todos se fiam: “Mundo este que já não acredita nos encontros e nas palavras dos homens”.