Do teatro à música, dos livros ao cinema, 2021 mostrou sinais de esperança e de resistência criativa à pandemia.
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Ao longo do ano prestes a terminar, a atividade cultural viveu entre o sobressalto permanente motivado pela covid-19 e tentativas de reatar rotinas em suspenso. A imaginação não se ressentiu mas a realidade económica continua a preocupar. Eis sete revisões possíveis da matéria dada em 2021.
1. artes - Novos momentos de comunhão
O momento de 2021 nas artes performativas ocorreu a 20 de abril, na abertura do Festival Dias da Dança, no Rivoli, Porto, com o espetáculo "Bate fado", da dupla Jonas & Lander. Aquele instante de comunhão num teatro repleto depois de um longo confinamento representou o que temos de melhor - enquanto público, tecido criativo e nação -, com um resgate da tradição. Num ano em que produções teatrais se estrearam meias feitas devido às contingências pandémicas, é de realçar trabalhos como "Estreito/Estrecho" do Teatro Experimental do Porto, "Estrada de terra" d"A Turma e "Abrigo para náufragos" de Jorge Louraço Figueira. Resultaram igualmente bem no palco virtual "Última hora" de Gonçalo Amorim e "Bodas de sangue" de António Pires. Merecem ser seguidos de perto Victor Hugo Pontes e Cláudia Gaiolas. Internacionalmente, a versão de Liam Scarlett de "O lago dos cisnes" para o Royal Ballet é para guardar na memória. Nas artes plásticas, destaques para "Jaime - Vi uma cadela minha com lobos", no Centro de Arte Oliva; "Os novos babilónios", de Pedro G. Romero, na Galeria Municipal do Porto; e "Ágora", de Mark Bradford, em Serralves.
Espetáculo do ano: "Bate fado" - Jonas & Lander.
2. banda desenhada - Autores nacionais em alta
Num ano marcado pela exposição "Hergé", sobre a obra e o homem, ainda patente na Gulbenkian, em Lisboa, ficam também como momentos altos o regresso às edições presenciais do Festival de BD de Beja e do Amadora BD, com programas aliciantes.
Em termos de edição, convém reter o aumento das propostas de autores nacionais e o modo como Portugal acompanha as tendências internacionais - revisão autoral de heróis clássicos, edições integrais, adaptação de romances literários - e o que de mais significativo vai sendo editado lá fora.
Num ano rico, há um livro que se destaca: "O relatório de Brodeck", adaptação do romance homónimo de Philippe Claudel por Manu Larcenet, que alia um grafismo realista assente num sublime jogo de contrates de branco e negro, ao tom depressivo, visceralmente violento e profundamente incómodo da obra sobre um assassinato coletivo perpetrado sobre um estrangeiro numa aldeia.
álbum do ano: "O relatório de Brodeck" - Manu Larcenet.
3. teatro - As fissuras do sistema
Em 2014, o francês Édouard Louis (n. 1992) escreveu um livro ("The end of Eddy") em que explica o que é viver no corpo de alguém que nasceu pobre, numa família disfuncional, numa cidade remota, tendo de reinventar-se a partir da pobreza e da discriminação sexual. Quatro anos depois, reincidiu na escrita autobiográfica ("História de violência"), para relatar a noite em que foi violado por um homem que a justiça não puniu. "Quem matou o meu pai" (TNSJ, Porto) é a adaptação do terceiro livro, numa extraordinária encenação e interpretação de Stanislas Nordey. Conta como a política matou o pai no dia em que um acidente de trabalho lhe esmagou as costas e a dignidade. O dramaturgo britânico Alexander Zeldin (n. 1986) estreou em 2016 a bofetada que chegou à Culturgest, em Lisboa, em 2021. "Love" é um relato sobre duas famílias que tentam sobreviver num albergue depois de terem perdido casa, emprego e apoio social. Louis e Zeldin, ambos sub-40, denunciam as fissuras de um sistema que trata a desgraça como crime. É deles o melhor teatro visto em Portugal este ano.
peças do ano: "Quem matou o meu pai" - Stanislas Nordey; "Love" - Alexander Zeldin.
4. CINEMA - Mil filmes lusos para digitalizar
O grande acontecimento do ano foi o anúncio, pela Cinemateca Portuguesa, da digitalização de mil filmes de produção nacional, até 2025, no âmbito do Plano de Recuperação e Resiliência. Uma oportunidade de preservar e dar a conhecer a nossa cinematografia, ainda tão desconhecida. O ano foi também marcado pela resistência de distribuidores e exibidores, que tudo fizeram para oferecer ao espectador de cinema as melhores condições sanitárias e o melhor do que se fez lá fora. Particular destaque para a presença regular de filmes portugueses nas salas. Um título há a registar: "A metamorfose dos pássaros", trabalho muito pessoal de Catarina Vasconcelos que foi anunciado como um dos cinco filmes portugueses dirigidos por realizadoras que a Netflix disponibiliza em 2022. O cinema português existe e resiste.
filme do ano: "Mais uma rodada" - Thomas Vinterberg.
5. música - Muita criatividade, poucas migalhas
Em 2021, andou-se atrás do dinheiro para assegurar o dia seguinte, com doses de ansiedade e paciência dependentes da proximidade do limiar da sobrevivência. Com a grande maioria dos ouvintes freguesa dos serviços de streaming, a resposta destas empresas ao problema das migalhas que músicos e compositores auferem com a audição da sua obra permaneceu em 2021, quando muito, evasiva.
Como no primeiro ano da covid-19, e à falta de uma refundação do circuito de concertos e festas, 2021 voltou a ter produção musical em quantidade e qualidade notáveis. No jazz e na eletrónica muito ou nada dançável, na pop e na composição contemporânea, no r&b e no rock clássico, e sobretudo nos cada vez mais vastos territórios híbridos entre géneros - de que "Promises", o álbum que brilhou mais alto neste período, é um exemplo galáctico.
disco do ano: "Promises" - Floating Points, Pharoah Sanders & The London Symphony Orchestra.
6. artes - Sair com vida das profundezas
É do passado que saem os motivos para agir no presente nos dramas de Henrik Ibsen. Do passado e dos túmulos privados que as suas personagens constroem. Esta forma complicou - e ajudou a destruir e a criar algo novo - o "drama absoluto" que dominava a cena europeia desde o século XVII. Voltar a este universo é sempre mergulhar em profundidade - e nem todos os escafandros resistem. Nuno Cardoso e o seu elenco (quase) residente do Teatro São João regressaram com vida de uma das mais duras descidas de Ibsen, "Espectros" (1881), e com isso reforçaram, no espírito do público, a mais luminosa matiz de um texto essencialmente sombrio - o direito a definirmos o que é para nós a felicidade e a procurá-la com intransigência.
Do ano teatral retiram-se ainda a leitura singular de "Tartufo", de Molière, pelo Teatro da Garagem (encenação de Carlos J. Pessoa) e a segunda escavação nos textos de Bernardo Santareno levada a cabo por João Cardoso, desta feita em "O pecado de João Agonia". Fora do teatro, um disco: "Subterrâneos", de O Gajo, ou como um punk se tornou feiticeiro da viola campaniça.
peça do ano: "Espectros" -, Henrik Ibsen, enc. Nuno Cardoso.
disco do ano: "Subterrâneos" - O Gajo.
7. literatura - Um ano para celebrar Saramago
Soará estranho, à partida, associar o momento literário mais marcante do ano a um acontecimento cujo apogeu apenas irá acontecer no final de 2022. Perplexidades à parte, a verdade é que o arranque das comemorações do centenário de José Saramago - ocorrido a 16 de novembro - constituiu não apenas um apontamento recheado de simbolismo, com a plantação de uma oliveira na sua aldeia natal da Azinhaga, mas também o ponto de partida para uma celebração gigantesca que irá prolongar-se durante os próximos dez meses e meio. Da reedição do volume "Viagem a Portugal" à leitura simultânea dos seus textos em centenas de escolas de diferentes países e continentes, os primeiros sinais evidenciados pelo vasto programa do centenário exibem uma enorme ambição que, a confirmar-se nas ações previstas para os tempos mais próximos, irão reforçar ainda mais a figura e a obra do único Nobel da Literatura de língua portuguesa.
livro do ano: "Diário da peste" - Gonçalo M. Tavares.