"Framing Britney Spears" lança uma nova luz acerca da tutela que o pai da cantora exerce sobre a estrela e questiona a cultura de misoginia que rodeou grande parte da sua carreira. O documentário produzido pelo jornal "The New York Times" estreia, esta segunda-feira, em Portugal.
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"A minha solidão está a matar-me" ("My loneliness is killing me"). Em 1998, uma jovem norte-americana da pequena cidade de Kentwood, do estado do Louisiana, lançava o single "Baby One More Time" e estava longe de imaginar que, anos mais tarde, o refrão da canção seria usado como arma de um protesto pela sua liberdade. É assim que começa o documentário "Framing Britney Spears": uma comunidade de fãs do movimento #FreeBritney ("Libertem a Britney") espera à porta do tribunal de Los Angeles pelas novidades de mais uma audiência sobre a tutela da cantora. O objetivo é dar a Spears a possibilidade se gerir a si mesma - desde 2008 que o pai Jamie gere a carreira e controla a fortuna da artista norte-americana.
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O documentário produzido pelo "The New York Times" (NYT), que estreia esta segunda-feira (22 de fevereiro) em Portugal, no canal Odisseia, lança uma nova luz - produto de um tempo que condena com veemência a desigualdade de género e está mais conectado à saúde mental - sobre o ambiente em que cresceu e depois se desmoronou a outrora princesa da pop. Embora a luta por Britney não seja uma novidade, o filme questiona a legitimidade da tutela exercida pelo pai e interpela a imprensa norte-americana sobre os comentários misóginos e depreciativos contra si ao longo da sua carreira. Há, aliás, poucas pessoas a ficar bem na fotografia: da família Spears a outras grandes estrelas dos EUA.
A dicotomia de menina doce e rapariga sensual
"Continua a ser virgem?", perguntaram-lhe numa conferência de imprensa, entre flashes de fotógrafos e câmaras de televisão. A memória de uma pergunta estranha ficou registada nas várias imagens de arquivo a que "Framing Britney Spears" recorre. Britney, envergonhada, responde que sim: "Quero guardar-me até ao casamento".
No final dos anos 90 e início do novo milénio, a cantora conquistava terreno num cenário pop dominado pelas "boys bands". Mas as perguntas que lhe faziam em nada se assemelhavam às dirigidas aos rapazes. "Eles apareciam em tronco nu nas revistas", recorda Hayley Hill, stylist da artista durante sete anos. Mas Spears foi regularmente criticada pelo uso de roupas ousadas em concertos, videoclipes, capas de revistas e cerimónias de prémios.
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Os depoimentos de pessoas antes próximas de Britney Spears são uma parte relevante do documentário do NYT. Ajudam a contar quem era a miúda do Louisiana, que iniciou o seu percurso profissional num programa da Disney, em 1992, "The Mickey Mouse Club".
Como Felicia Culotta, assistente da cantora durante oito anos. É na casa desta antiga babysitter que percorremos as paredes inundadas por fotografias das duas. "Tenho estas cartas todas, imaginem quantas ela recebia. Enchiam um quarto inteiro", mostra, quase como se falasse de uma filha.
Em Nova Iorque (1997) Britney assinou um contrato com a Jive Records, começou a dar concertos em centros comerciais, e a sua carreira cresceu quase à velocidade da luz. Kim Kaiman, ex-diretora de marketing da editora discográfica, salienta a perseverança de Spears, uma menina que "tinha esperança e sonhos", e a preocupação do pai Jamie em rentabilizar a carreira na cidade que nunca dorme. "Ele dizia muitas vezes: "Quero que a minha filha me compre um barco'", recorda Kaiman, com sarcasmo. E sentencia para o resto do documentário: "É tudo o que tenho a dizer sobre ele".
Tabloides centrados nos escândalos
Em pouco mais de uma hora de filme, uma nuvem de injustiça e incompreensão parece sobrevoar os anos dourados da princesa da pop. Recorrendo a críticos e colaboradores do jornal, o NYT contextualiza os bastidores de uma artista incompreendida. Britney era a típica miúda americana, "acessível", mas que fazia uso de uma sensualidade que alguns consideravam imprópria para o tipo de público que a ouvia. Perante as críticas, Spears dizia-se "triste" e interrompia entrevistas para se acalmar. Em programas de televisão teve até de reagir a comentários sobre o tamanho do seu peito.
Mas a insegurança vai desaparecendo. "Ela deixa de querer agradar a toda a gente", refere a antiga stylist. Depois de terminar o namoro com o também cantor Justin Timberlake (a artista é acusada de traição), o ano de 2003 traz músicas ainda mais ousadas. A cantora tenta afirmar-se pela capacidade criativa que imprime nos seus espetáculos ao vivo e nos álbuns. "Não era uma marioneta. Sabia bem o que queria", revela um antigo bailarino. Em imagens de arquivo dos ensaios de Spears, a cantora revela-se um "animal de palco."
A imprensa tabloide dos EUA esteve, no entanto, mais atenta ao rebuliço da vida privada. Não esqueceram a alegada traição a Timberlake, que após a emissão do documentário, pediu desculpa à cantora pelos danos e a falta de apoio que lhe deu na altura. O filme revela uma entrevista do cantor a uma estação de rádio, em que confirma entre risos que teve relações sexuais com a ex-namorada.
A perseguição dos paparazzi
"Todos queriam um pedaço da Britney", opina um antigo paparazzo, Daniel Ramos. Quando a artista anuncia no verão de 2004 que está noiva do bailarino Kevin Federline, o valor de uma foto dos dois dispara.
A pressão pública aumenta e Britney entra numa espiral negativa difícil de travar: as agressões a fotógrafos, a entrada em centros de reabilitação e as festas culminaram com a perda de controlo sobre a sua própria vida. Em 2008, o pai Jamie Spears pediu a tutela da filha, que dura até aos dias de hoje.
Ainda não sabemos nada sobre Britney
"Framing Britney Spears" revela, ainda que levemente, o que a cantora pensa sobre a sua situação, através de pequenos excertos de imagens de arquivo e mensagens (quase) encriptadas nas redes sociais.
A 11 de fevereiro, a artista, que tem contestado mais ativamente a tutela do progenitor desde o ano passado, conseguiu uma pequena vitória. O Tribunal Superior de Los Angeles, nos EUA, determinou que a empresa Bessemer Trust, que gere fundos, vai passar a partilhar equitativamente a tutela com Jamie Spears. Um facto que não entra no filme documental, já que foi lançado nos Estados Unidos a 5 de fevereiro, antes desta decisão. O caso deverá continuar e há uma nova audiência em tribunal marcada para 17 de março.
Nunca será totalmente claro quem é Britney Spears. A não ser que um dia decida contar a sua história nos seus próprios termos e condições. Há um hiato de entrevistas, depoimentos e declarações que nunca foram feitos, ou se foram, aconteceram em moldes muitos controlados nos últimos dez anos. A própria equipa do documentário admite-o e divulgou uma lista de pessoas que recusaram ou não responderam ao convite para participar. Entre eles está toda a família Spears. O "New York Times" não tem a certeza sequer de que Britney tenha recebido o convite.
Em quase 20 anos de carreira, o Mundo parece saber tudo e quase nada sobre a estrela. Talvez, por isso, "Framing Britney Spears" seja um murro no estômago. E só dá vontade de lhe pedir desculpa.