Apesar de não concorrer com nenhum título à Palma de Ouro, o cinema português marca presença em Cannes. Para já, foram exibidos “Entroncamento”, de Pedro Cabeleira, na secção ACID, e “O Riso e a Faca”, de Pedro Pinho, em Un Certain Regard.
Corpo do artigo
Nascido na cidade do centro do país que dá título ao filme, Pedro Cabeleira filma sem concessões histórias marginais e de marginais, juntando atores profissionais com gente que conhece e oferecendo a Leonor Teles a criação de uma imagem granulada, noturna e inventiva.
Após a primeira projeção do filme, estivemos a falar com Pedro Cabeleira. Feliz por trazer histórias da sua cidade a Cannes. “A sensação é ótima. É um projeto que me diz muito, tem muito a ver com um local que me é muito querido e onde eu cresci e me comecei a formar como pessoa. No fundo onde estão as minhas raízes. E é comovente saber que isso vai tocar mais pessoas”, disse ao JN. “Há um lado egoísta nosso, de acharmos que o sítio onde crescemos é sempre especial. Isso também traz alguma universalidade ao projeto. São relações às vezes complicadas, de amor/ódio. E Cannes é uma montra muito fixe, espero que a partir daqui o filme circule por mais sítios, que não se resuma a isto.”
O realizador não sabe ainda bem se houve festa no Entroncamento. “Não estive lá, mas acho que sim. As pessoas ficaram contentes. É importante falar das coisas que são mais duras, e não apenas das coisas bonitas. Também há uma certa beleza nos temas duros e cruéis da vida. O filme também foi feito com a ajuda da comunidade de lá, especialmente as pessoas com quem cresci. Sempre me apoiaram muito, sempre apoiaram o projeto, inclusivamente agora na promoção, toda a gente partilhou o poster e os teasers nas redes sociais. Têm estado todos muito entusiasmados. Mesmo que não seja o melhor lado da cidade, vão sentir uma grande empatia e que é autêntico.”
Pedro Cabeleira partilhou connosco as primeiras reações ao seu filme. “Um amigo meu que tem um papel muito pequeno no filme trabalha aqui perto como chefe num restaurante, veio ver o filme e ficou muito comovido, a ver aqueles espaços e aquelas histórias que ele também conhece muito bem”, explicou.
“A imprensa é sempre muito dura, não é um filme fácil, do ponto de vista formal”, diz Pedro Cabeleira. “Também não me interessam estruturas muito lineares, coisas muito óbvias. O cinema hoje em dia também parece estar muito focado numa forma muito protocolar de contar as histórias. Isso vai ser um problema para algumas pessoas, mas outras, que estão à procura de coisas um bocadinho diferentes. Na primeira projeção senti que houve pessoas que reagiram muito bem ao filme. Um grupo de jovens de 18 anos ficaram a falar comigo depois do filme. Fico contente que as novas gerações compreendam outros tipos de linguagem.”
Finalmente, o realizador desvendou como tem sido o acolhimento na secção que selecionou o filme para Cannes. “No ACID trabalham os filmes de uma forma muito especial. E escolhem projetos muito arriscados. O ACID é programado por realizadores, são colegas meus que viram o filme. E querem que estes filmes também tenham o seu lugar e sejam vistos. Têm um carinho muito especial pelos filmes que escolhem. O filme foi feito de uma forma comunitária, um pouco punk, com um orçamento não muito grande. E foge à lógica de se tentar inserir no mercado de autor. A ACID começou em Cannes em 1992, eu nasci em 1992, temos a mesma idade”, concluiu.
Quanto a “O Riso e a Faca”, de Pedro Pinho, acompanha ao longo de mais de três horas o percurso de um engenheiro ambiental que vai de carro para a Guiné-Bissau, trabalhar num relatório sobre o impacto da construção de uma estrada que vai ligar a salve ao deserto. O filme cruza temáticas muito de uma certa modernidade no cinema, como as questões ambientais, a sexualidade e o pós-colonialismo, podendo ser visto como um “filme-agenda”, como forma de chegar a financiamentos internacionais muito sensíveis a estas temáticas. Um desafio para o público, quando o filme chegar às nossas salas.
Entretanto, a competição pela Palma de Ouro não parou, com a exibição de “Renoir”, da japonesa Chie Hayakawa, uma história sensível e poética sobre uma garota de onze anos que lida com a doença terminal do pai e o desinteresse da mãe, tendo de descobrir sozinha o seu caminho. O filme tem o rigor e a espiritualidade habitual no cinema japonês, mas falta-lhe alma.
Pior, desastroso mesmo, é “Die, My Love”, da escocesa Lynne Ramsay. Uma história de loucura, supostamente associada ao trauma pós-parto da protagonista, situada num local isolado dos Estados Unidos, reunindo um jovem casal, interpretado por uma arrojada Jennifer Lawrence e um uma vez mais pouco credível Robert Pattinson, resulta numa amálgama incoerente e sobre intelectualizada e muito pretensiosa.