A cartoonista Nine Antico estreia-se no cinema com uma obra de algum cunho autobiográfico. Já nas salas.
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Uma das acusações de que o cinema francês contemporâneo dificilmente se pode livrar é de que se tem vindo a standardizar, com as instituições que o regulam a apostar em mais do mesmo, no filme para o grande público, estando cada vez menos atentas às suas margens, a que se junta uma enorme míngua de "autores", no sentido em que eles próprios, os franceses, o instituíram, pela voz dos jovens da Nouvelle Vague.
Em conversa recente com Serge Toubiana, o antigo chefe de redação dos "Cahiers du Cinema" e atual presidente da Unifrance aceitou a ideia, contrapondo, no entanto, a existência de pequenas "ilhas", aqui e ali, que iam mantendo, apesar de tudo, o estatuto do cinema francês.
Pois a já consagrada cartoonista Nine Antico reclama desde logo uma dessas "ilhas" com a sua primeira longa-metragem, "Playlist", já em exibição em sala.
A personagem central, Sophie, está naquela fase em que vê os anos e a vida passar sem concretizar os seus sonhos. Trabalha como empregada de mesa num restaurante e está grávida do cozinheiro, que só a quer levar lá para a casa de banho e assume não a amar. Tem o sonho de escrever bandas desenhadas - agora são novelas gráficas, alguém lhe explica - contra a vontade dos pais, que não acreditam que isso seja uma profissão.
Sophie acaba por arranjar emprego numa famosa editora de BD, mas para secretariar e fazer ligação com a imprensa. O patrão é um parvalhão e o seu inglês e capacidade de escrita de emails não é a melhor, por isso acaba mais uma vez a servir às mesas. Entretanto, cruzara-se com alguns autores a quem mostrou os seus desenhos e percebe que entrar para uma escola de arte é o melhor passo a dar, caso as inscrições não fossem limitadas a menores de 25 anos. E Sophie, quando lhe perguntam a idade, hesita sempre entre os 25 e os 28. É sempre possível abrir uma exceção, mas para isso é necessário apresentar uma boa carta de intenções...
Pelo caminho, Sophie vai fazendo também uma playlist, não só de música, outra das "personagens" do filme, mas também de homens, que vai juntando e riscando em função dos encontros, que por vezes nem chegam a isso. O ponto G, o orgasmo e as formas de utilizar ou não a vagina fazem parte de vários diálogos do filme, nessas conversas entre mulheres de que nós homens (verifiquem a assinatura deste texto) sempre desejámos saber o conteúdo.
Chegados aqui, pode o leitor e potencial espectador de cinema perguntar-se: mas eu não vi já este filme? A resposta é sim, pelo conteúdo, mas não, pela forma. É que Nine Antico, apesar de não se colar à estética da BD - como acontecia por exemplo no "Dick Tracy" de Warren Beatty -, utiliza a sua liberdade criativa, a forma de passar de um plano a outro, de enquadrar as personagens, de as fazer percorrer a história.
Nada disto seria também possível sem a tremenda graça e generosidade de Sara Forestier, uma atriz que tem vindo a afirmar-se no cinema francês e que já se estreou, também ela, na realização, oferecendo toda a sua energia a personagens como a de "Playlist".
Vindo de uma autora de banda desenhada, é natural que muitas das histórias que o filme conta sobre o meio tenham um cunho autobiográfico. Já se a vida privada da personagem se baseia também no histórico sentimental da autora é um assunto que só a si diz respeito. Pela nossa parte, ficamos com um filme de uma enorme frescura, que ao fim de um minuto se esquece que é a preto e branco - a vida de Sophie, apesar de o parecer, não é muito colorida - e que se é capaz de levar para casa, para discutir com os amigos ou até, porque não, para pensarmos nas nossas próprias existências.
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