Seria difícil de acreditar que uma série documental sobre Joe Exotic, um bizarro tratador de tigres norte-americano, em que os protagonistas parecem estar numa competição paralela pelo prémio da personalidade mais estrambólica, tivesse a mesma audiência (65 milhões de espectadores) do que "Stranger things", a série de ficção mais popular da Netflix. Mas foi o que aconteceu.
Corpo do artigo
"Tiger King: Morte, caos e loucura" é um dos fenómenos virais de 2020 e cimenta uma tendência: há audiências para histórias reais e o investimento pode ter retorno, sem que se sacrifique a qualidade. A série gerou movimentações legislativas no Congresso dos EUA e vai dar origem a uma série de ficção com Nicholas Cage.
É aqui que deveria entrar em cena Portugal, país vasto de narrativas suficientemente interessantes e com possível apelo global. O secretário de Estado do Cinema, Audiovisual e Media reconhece ao JN a "enorme popularidade" que o género pode ter e que há território temático português por aproveitar . "Nas conversas que tive com os responsáveis da Netflix, lembrei que havia um grande campo para explorar no documentário, ainda antes da ficção", afirma Nuno Artur Silva, que salienta também que o concurso lançado pela plataforma e o Instituto do Cinema e do Audiovisual, para apoiar produções nacionais (no valor de 155 mil euros), inclui também o documentário.
Acontece que o tamanho do mercado nacional não acompanha o potencial de acontecimentos narráveis. Os agentes do setor sabem que a qualidade, mesmo nestas "docuseries", custa dinheiro. Não se trata de falta de capacidade humana, notam, mas de custos.
300 mil por episódio
As contas não são difíceis de fazer. Para produzir um documentário deste género seria preciso percorrer centenas de horas de gravações, com vários editores a selecionar; depois, obter os direitos de utilização das imagens; em seguida, entrevistar protagonistas, em condições de luz e som de alta qualidade, com operadores e técnicos de imagem e som; e há ainda que pensar numa banda sonora e noutras necessidades de produção. Estamos já a rondar os 300 mil euros por episódio, calcula Pandora da Cunha Telles, da produtora Ukbar Filmes, uma das responsáveis por "A espia", que está a ser exibida na RTP.
Além disso, acrescenta, as plataformas fazem "exigências técnicas que são superiores à maior parte das longas nacionais". Um exemplo? Em Portugal só há um monitor certificado para fazer a correção de cor exigida pela Netflix. "É preciso diversidade de financiamento, diversidade de olhares" e só aí, diz a produtora, será possível ultrapassar as limitações do mercado e conseguir "pôr o pé na porta".
Não vai ser fácil, admite também João Matos, da Terratreme. Primeiro, porque esses gigantes olham para o "mercado português como sendo residual". E depois, porque a realidade de "sub-orçamentação nacional" diminui "a capacidade competitiva" contra países como a Alemanha ou Espanha.
Há também a questão da identidade que o documentário nacional tem cultivado, de pendor mais "autoral e observacional", analisa Joana Gusmão, codiretora do festival DocLisboa. As plataformas "são bastante específicas nas escolhas desses conteúdos" e mesmo que existam já produções que podiam encaixar "na linguagem Netflix", realça, "não podemos comparar os orçamentos" disponíveis em Portugal com os de outros países.
McMillions (HBO)
Sobre a investigação a uma fraude de milhões num concurso organizado pela McDonald"s, nos anos 90.
Dirty Money (Netflix)
Já na segunda temporada, aborda escândalos e casos de corrupção no mundo financeiro
Free Meek (Amazon)
A história de um afro-americano preso num limbo legal durante 12 anos.