No Dia Mundial do Cinema, que se assinala nesta sexta-feira, o "Jornal de Notícias" apresenta uma pré-publicação de um capítulo do novo livro de Mário Augusto, com lançamento previsto para o próximo dia 18. No livro "Como se fosse um romance", o conhecido jornalista lança um olhar panorâmico sobre a sétima arte, desde a invenção dos projetores até às mais recentes inovações de efeitos especiais.
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CENA 2
OS ENSAIOS DO MOVIMENTO
«O cinema não tem futuro comercial.»
Auguste Lumière
Para os norte -americanos, a novidade do cinema saiu dos laboratórios de Thomas Edison. Os historiadores não contestam a sua importância, mas, na mesma altura, assistia -se a um culminar de desenvolvimentos vários que registavam a vida em movimento. Nos livros, diz -se que os primeiros foram os Lumière, mas também eles são tão-só parte da história.
No final do século XIX, vivia-se num clima de inovações constantes; é nesse contexto que é apresentado o cinematógrafo, não ainda como arte, mas como uma geringonça tecnológica que per mitia, para grande surpresa de quem via, a tal magia de projetar fotografias que se mexiam. Primeiro, foram uns caixotes de madeira, bem envernizados, com uma pequena lente e uma mani vela que, ao rodar, captava o movimento numa película. O princípio por detrás dessa técnica desde há muito era testado em diversos laboratórios, de áreas tão distintas como a física, a mecânica e a química.
Dizem as enciclopédias que a primeira sessão de cinema comercial decorreu numa noite de inverno, a 28 de dezembro de 1895. Estava frio, mas o entusiasmo do público aqueceu o Salão Indiano do Grand Café de Paris, numa sessão de 40 minutos.
O bilhete para assistir ao evento custou 1 franco e, nessa primeira sessão, estavam apenas 33 espectadores. Esperava -se muitos mais; de facto, tinham sido colocadas na sala 100 cadeiras, mas nem a imprensa apareceu para assistir à novidade. No entanto, os que lá estavam ficaram tão espantados que a notícia rapidamente correu pela capital francesa. As sessões seguintes, e foram muitas, estavam constantemente esgotadas. Todas as noites, massas de curiosos acotovelavam -se à porta para tentar obter um lugar na sala. Havia zaragatas, a polícia tinha de intervir, mas os que tinham conseguido bilhete saíam da sessão maravilhados com o que haviam visto.
Há menos certezas quanto a terem sido os irmãos Lumière os inventores do cinema. Não podemos sequer dar uma data precisa nem um nome isolado de quem terá criado esta arte e as maquinetas que a tornaram possível. Podemos apenas dizer que os irmãos de Lyon foram os primeiros a mostrar uma solução eficaz de captura e projeção de imagens.
Era velho o sonho de registar o movimento, de criar uma ilusão de vida e de transformá-la em histórias que envolvessem uma plateia curiosa. Os primeiros a desenvolver essa ideia enquanto jogo de luz e sombra foram os cientistas e os inventores, explo radores sempre na vanguarda da inovação. Em 1645, o padre jesuíta Athanasius Kircher desenvolvera uma forma de projetar imagens para entretenimento: era uma lanterna com um jogo de lentes e uma lâmpada de azeite incorporada, cuja luz, ao passar por um vidro pintado, projetava imagens. Tal como os filmes do futuro, as projeções de imagens de Kircher no seu epidascópio estavam associadas à imaginação e ao mistério. Mais tarde, o dinamarquês Thomas Walgenstein viria a batizar o invento de «lanterna mágica».
Mais de um século depois de Kircher, em 1790, foi muito popular em Paris um espetáculo que se pode considerar um ante cessor dos filmes de terror, um jogo de sombras e imagens assus tadoras, fantasmas e esqueletos projetados à luz da vela com várias lanternas mágicas, a que chamaram Fantasmagoria, um con ceito bem pensado pelo inventor belga Étienne-Gaspard Robert.
Em pleno século XIX, os empresários do espetáculo aperfeiçoaram a lanterna mágica e esta tornou-se um negócio florescente e popular por toda a Europa como forma de contar histórias.
Numa primeira fase, os aparelhos com lamparinas projetavam ação através do movimento de pedaços de vidro pintado, mas limitavam-se a usar desenhos com animações muito básicas. Tudo mudou com a invenção da fotografia, pelo francês Joseph Nicéphore Niépce, por volta de 1823. A partir dessa altura, os aparelhos que simulavam movimento, como a lanterna mágica, o estroboscópio ou o Zoetrope (em português, zootrópio), desenvolvido na América em 1833 e muito popular, passaram a usar representações fotográficas em vez de desenhos.
Aposta decisiva
Queria que esta origin story fosse mais romântica, mas a verdade é que a ideia de experimentar a fotografia para captar o movimento
resultou de uma aposta de 25 mil dólares feita em 1872. O cali forniano Leland Stanford, político e magnata dos caminhos de ferro (também fundador da Universidade de Stanford, construída precisamente no local onde foi feita a experiência tira-teimas da tal aposta), apostou com um amigo, durante uma corrida de cavalos, que o animal a galope chegava a tirar as quatro patas do chão, ficando assim suspenso no ar. Ora, com a rapidez com que o cavalo corria, o facto não era percetível ao olhar e não havia forma de reconhecer qual dos dois teimosos estava certo. Foi por isso que decidiram contratar Eadweard Muybridge, um fotógrafo e artista ambulante inglês que trabalhava em São Francisco.
O senhor Stanford propôs-se pagar o que fosse necessário a Muybridge para que arranjasse maneira de captar as imagens de um cavalo a galope e assim provar que ele tinha razão... ou não. Hoje parece-nos uma coisa simples - um telemóvel básico faz essa captura -, mas, na altura, o fotógrafo teve de puxar pela cabeça para responder ao desafio. Dinheiro não era problema, e por isso ele alinhou 12 máquinas fotográficas e outros tantos fios que, ao serem cortados à passagem do cavalo a galope, faziam disparar cada um dos aparelhos em sequência e de forma muito rápida. Muybridge conseguiu captar o momento em que um cavalo a correr fica, por uma fração de segundo, suspenso no ar. Leland Stanford ganhou a aposta e pagou a experiência, mas, mais importante do que isso, o fotógrafo - baseando -se nas demonstrações do zootrópio e na velha tese científica da persis tência retiniana - percebeu que as imagens, ao serem mostradas rapidamente e em sequência, voltavam a ganhar movimento.
Mais tarde, Muybridge percorreu o país, exibindo os seus estudos fotográficos em movimento, e apercebeu-se de que era possível rentabilizar a experiência. Num jornal da época, quase como uma profecia, escrevia assim o repórter, testemunha de uma demonstração em maio de 1880: «O Sr. Muybridge traçou os fundamentos de um novo meio de entretenimento, e nós prevemos que esta lanterna mágica de fotografias instantâneas irá dar a volta ao mundo civilizado.» Os espectadores referiam-se ao seu espetáculo como «a lanterna mágica que endoideceu», e o facto de muitas das imagens que ele mostrava nesses testes fotográficos serem de modelos nus, incluindo o próprio autor, não terá sido alheio ao interesse despertado, levando público às exposições numa curiosidade voyeurística.
Em 1888, numa dessas digressões pelo país para mostrar as suas fotos animadas, o artista parou em West Orange, na Nova Jérsia, onde conheceu a figura mais popular da terra e que era já na altura uma lenda americana: Thomas Alva Edison. «Para inventar», gostava de dizer Edison, «é preciso imaginação e um monte de sucata.» Em 1877, aos 30 anos, ele espantara o mundo com o fonógrafo. Dois anos depois, apresentou um sistema de iluminação elétrica que dava luz a cidades inteiras.
Quando Muybridge conheceu Edison, o fotógrafo inquietou-o com outra ideia brilhante: e se se juntasse o som do fonógrafo às imagens em movimento? O inventor ficou intrigado e, como empreendedor que era, a 8 de outubro de 1888 anunciou planos para «criar um instrumento que seria para os olhos o que o fonó grafo era para os ouvidos». Não fazia ideia de como concretizar este feito, mas, com a sua astúcia habitual, estava já a reclamar uma futura patente (era, como se sabe, o que mais gostava de fazer, mesmo a propósito de invenções que não fossem dele). Ao longo da vida, Edison registou 2332 patentes, nem todas funcionais, mas quase todas rentáveis. Neste caso, depois do desafio de Muybridge, o famoso inventor atribuiu a tarefa a dois dos seus colaboradores, o francês Eugène Lauste e William Kennedy Dickson, um engenhocas de origem escocesa que era o fotógrafo dos laboratórios Edison.
Os caixotes mágicos
Na primeira tentativa de fazer fotografias que se moviam, Dick son usou uma série de pequenas imagens enroladas num cilindro, semelhante ao primeiro fonógrafo de Edison. Essa primeira experiência mostrava imagens muito rudimentares, mas que já sugeriam movimento. Contudo, haveria ainda um longo trabalho pela frente e, se Edison não era o único a tentar captar e mostrar fotografias animadas, foi, sem dúvida, quem acelerou o processo: logo cinco anos depois do seu encontro com Muybridge, na Exposição Universal de Chicago de 1893, apresentou aos visi tantes a primeira versão do cinetoscópio (Kinetoscope, no original), que permitia, embora a um espectador de cada vez, espreitar por um binóculo montado num caixote escuro e ver a vida a mexer lá dentro.
Nesse sprint final do século XIX, também em Inglaterra, Ale manha e França inúmeros outros inventores trabalhavam com entusiasmo para o mesmo objetivo. Pouco a pouco, Paris come çou a figurar como a cidade essencial da história do cinema.
O francês Étienne-Jules Marey, inspirado no trabalho de Muybridge, criou uma estranha câmara que captava imagens numa fita de papel fotográfico perfurado. A invenção de Marey era sui generis porque em nada se parecia com uma câmara: era simplesmente uma espingarda que disparava fotos registadas num tambor com papel fotográfico, e que ficou conhecida como «espingarda fotográfica».
Os visitantes da Exposição Universal de 1889 deslumbraram-se com a exuberância da Torre Eiffel, construída especialmente para a feira, e espantaram -se com as novidades apresentadas pelos grandes empreendedores, entre eles Edison, que exibiu com pompa o seu sistema de luz elétrica e levou consigo o cinetoscópio, o caixote das imagens, que continuava a aperfeiçoar. Foi em Paris que soube das várias experiências que se estavam a desenvolver na velha Europa para a captura e a projeção de imagens.
De regresso aos Estados Unidos, Thomas Edison levava novas instruções para Dickson: usar uma película fotográfica perfurada para guiar as imagens através de umas rodas dentadas, que ele devia integrar no desenho do cinetógrafo (Kinetograph), que filmava, e do cinetoscópio (Kinetoscope), que projetava as filmagens do primeiro.
Estas novas experiências tornaram-se possíveis graças a uma película flexível de nitrato de celulose, aperfeiçoada em 1884 por George Eastman, o inventor da máquina fotográfica Kodak (foi também Eastman que, anos depois, acrescentou furos nas margens desta película, o que facilitava a estabilização da imagem). Em breve, Edison e Dickson anunciariam a antestreia comercial da grande novidade.
Em 1891, a mulher de Edison, Mina, recebeu as amigas da General Federation of Women"s Clubs na casa da família, em Glenmont. Mina pediu às senhoras, convidadas para um chá, que espreitassem para dentro de uma caixa de madeira com uns binóculos no topo: era a versão definitiva do aparelho que fora apresentado nas exposições mundiais de Chicago e Paris. Lá dentro, a brilhar no escuro, saltava à vista uma coisa espantosa, uma imagem brilhante que se movia - era o próprio William Dickson a agarrar o chapéu e a acenar com simpatia, agrade cendo. Estava vivo e a preto-e -branco, pequenino e a saltar naquela luz retroprojetada.
Toda a gente que a seguir viu a novidade de Edison ficou espantada. O jornalista do New York Sun escreveu, a propósito:
«Na parte de cima da caixa há uma abertura de aproximadamente uma polegada de diâmetro. Ao espreitar por essa abertura, viu -se a figura de um homem, uma maravilhosa fotografia. Ele sorria, acenava, curvava -se em reverência. Todos os movimentos eram perfeitos.»
Era o culminar de séculos de ideias e invenções. Uma nova maneira de registar o mundo estava a ganhar forma, graças a uma notável geração de inventores e engenheiros visionários que apontava o caminho para uma nova e potente forma de entretenimento.