Sepideh Farsi lança críticas a Cannes: "Há decisões políticas que custam mais caro que outras"
Realizadora de documentário acusa Cannes de tratar diferentemente a Ucrânia e a Palestina.
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Era um dos momentos mais aguardados do Festival de Cannes. Apesar de selecionado para o ACID, a secção mais recente de Cannes e ainda com pouca visibilidade, “Put Your Soul in Your Hand and Walk” já chegou ao festival com uma forte carga emotiva, derivada do facto do filme mostrar o trabalho de uma jovem fotógrafa palestiniana morta, com quase toda a família, num ataque do exército israelita no dia a seguir ao anúncio da seleção para Cannes.
A realizadora, a iraniana no exílio Sepideh Farsi, construiu o seu filme com a gravação das suas conversas em vídeo pelo telefone, do Cairo, onde Farsi se encontrava, para a Faixa de Gaza. Em longa conversa com o JN, que publicaremos na íntegra quando o filme tiver a sua primeira projeção em Portugal, a realizadora acusou Cannes de tratar de forma diferente as situações que se vivem hoje na Ucrânia e na Palestina, resumindo a situação numa frase: “há decisões políticas que custam mais caro do que outras”.
Na realidade, logo no primeiro dia do festival, e antes da sua abertura oficial, foram exibidos três documentários sobre a guerra na Ucrânia. Pelo contrário, a petição assinada por milhares de pessoas, muitas ligadas ao cinema, para que a cerimónia de abertura homenageasse a memória de Fatma Hassona, a jovem palestiniana assassinada com a família, não teve seguimento.
No entanto, e provavelmente quebrando o protocolo, a presidente do júri, Juliette Binoche, que segundo Farsi assinou o abaixo-assinado, depois retirou a sua assinatura e mais tarde voltou a colocá-la, acabou por a lembrar, referindo que deveria estar na sala, naquela noite. Entretanto, as fotografias de Fatma Hassona, que iam chegando até Sepideh Farsi, e que são testemunhos notáveis da vida quotidiana em Gaza, estarão presentes até ao fim do festival no icónico Hotel Majestic e no Pavilhão da Palestina que se encontra no mercado.
Ari Ester agita competição, Kristen Stewart dá show no palco do Debussy
Entretanto, a competição pela Palma de Ouro continuou com a exibição de mais dois filmes. “La Petite Dernière” e “Eddington”. O primeiro é a nova realização de Hafsia Herzi, nascida em França de origem maghrebina, e que, além de ter já uma considerável carreira como atriz, se tem decidido ultimamente também pela realização. Infelizmente, como já acontecera no filme anterior, “Bonne Mère”, Herzi aborda um tema forte, mas fica-se pelo cliché, pelo esperado, pelo compromisso, além de demonstrar muito pouco talento para a realização.
Aqui, aborda a história de uma jovem, a mais nova de três filhas de uma família árabe, que descobre a sua sexualidade em encontros com outras raparigas, através de aplicações online, acabando por estabelecer um elo mais forte com uma jovem enfermeira coreana. Mas haverá mais clichés sobre uma família árabe que só vermos a mãe e as irmãs na cozinha, e o pai deitado no sofá ou fora de casa a jogar dominó com os amigos? No que diz respeito à homossexualidade feminina e o seu cruzamento com a religião, que a protagonista segue fielmente, o encontro com o imã mais parece um folheto de propaganda, enquanto que o corpo da mulher, que seria o primeiro sinal de arrojo por parte da realizadora, é exclusivo de uma personagem secundária, francesa, claro…
Bem mais interessante, e surpreendente, é “Eddington”, o novo filme do jovem prodígio nova-iorquino Ari Aster, argumentista e realizador já revelado por “Midsommar – O Ritual”. Aqui, coloca a ação na pequena localidade que dá o título ao filme, algures no Novo México e em plena pandemia. A disputa entre o xerife, que se quer candidatar a Mayor, e o atual responsável político pela localidade, que deseja recandidatar-se, vai atingir proporções paroxísticas, levando o filme, e o espetador com ele, numa direção inesperada.
Eddington, como Twin Peaks, Nashville ou Texasville, um microcosmo da América, no que pode ser visto como uma feroz crítica à cultura das armas na sociedade norte-americana. E para se perceber como Ari Aster, apesar de ter apenas 38 anos, tem já algum poder, ganho à força do seu talento e popularidade dos seus filmes, o elenco principal de “Eddington” é composto por um irreconhecível Joaquin Phoeniz e por deliciosas composições por parte de Pedro Pascal e Ema Stone.
Mas o prémio de estrela do dia de ontem na Croisette vai seguramente para Kristen Stewart. A jovem mas já muito popular atriz, perante casa cheia na que foi a sessão mais difícil para conseguir bilhete até hoje, apresentou na secção Un Certain Regard a sua estreia na realização de longas-metragens, “The Chronology of Water”.
O filme é uma evocação poética do percurso de uma jovem que escapa de um possível futuro olímpico na natação, de uma família abusiva e de adição às drogas e ao sexo, para se tornar escritora, após um curso de literatura com Ken Kesey, o autor de, entre outros, “Voando Sobre um Ninho de Cucos”, que Milos Forman e Jack Nicholson tão bem levaram ao ecrã.
Aqui, é uma Kristen Stewart que realiza um filme à sua imagem, criativa sem ser pretensiosa, sensível ou radical, quando as situações o exigem, e que sabe usar a gramática do cinema. O filme exige do público talvez mais do que habitualmente. E é já esse o seu primeiro trunfo. É também para alargar os horizontes de quem está por vezes demasiado confortável na sua cadeira de cinema que existem festivais como o de Cannes.