Músico e ator interpreta o papel do lendário deputado, poeta e guerrilheiro brasileiro em "Marighella", quinta-feira nas salas de cinema.
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Wagner Moura, revelado como o protagonista dos dois "Tropa de Elite", estreia-se na realização com "Marighella", o pungente retrato do homem que, depois do golpe de Estado que derrubou o governo legitimamente eleito em 1964 e colocou uma ditadura militar no poder, conduziu um grupo de homens e mulheres à resistência armada. O filme acompanha a sua vida entre 1964 e a morte violenta em novembro de 1969. Para interpretar esta figura mítica da história brasileira foi escolhido o popular músico Seu Jorge, que encontrámos na estreia mundial do filme, em Berlim. Terminado em 2019, o filme ainda não se estreou no Brasil mas chega amanhã às nossas salas de cinema.
O que representa para si Marighella?
É um herói da resistência. E está outra vez vivo. Eu nasci nos anos 70 e não se falava muito dele. Em casa, a minha mãe e o meu pai não falavam de política. Só muito mais tarde é que tomei consciência do que tinha sido a ditadura. E agora surgiu este grande desafio de interpretar a personagem, num momento muito especial para o Brasil. Nunca vi o povo brasileiro tão dividido. É como o lado A e o lado B de um disco de vinil.
Acha que os artistas têm uma responsabilidade acrescida de ter uma opinião e partilhá-la?
É tempo de partilhar tudo. Temos o Facebook e o instagram mas é melhor partilhar ideias boas do que a porcaria toda que consumimos diariamente. E o Brasil tem uma missão, temos de mostrar ao mundo a nossa cultura. Não podemos querer ser americanos, temos de ser sul-americanos. Há uma grande diferença. Com este filme temos uma boa oportunidade de mostrar a nossa resistência.
Como é que vê a situação no Brasil?
Vivemos um tempo difícil. O liberalismo é uma tendência no mundo de hoje. E a mesma tendência chegou ao Brasil. Quando vou a ações do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto vejo tantas crianças com as mães e os pais. Fazem-me lembrar eu quando era miúdo e a minha mãe estava desempregada. Há tantos miúdos que não vão à escola, sem cuidados médicos, porque o governo quer reduzir as despesas com a população.
Como é que se preparou para o papel?
Falei com alguns antigos guerrilheiros. E trabalhei com a [preparadora de elenco] Fátima Toledo. Foi um processo doloroso. Passava uma hora a fazer flexões. Punham-me um cigarro por baixo do corpo para não poder descansar. E diziam-me que eu não era capaz de interpretar Marighella, não era suficientemente forte. A minha mulher é que me apoiou bastante, porque com o resto da equipa foi muito duro. Sofri mesmo, foi uma tortura.
Qual é a importância de mostrar um herói negro neste momento?
O Brasil tem um problema com isso nessa altura. Tenho orgulho em representar alguém como Marighella, independentemente da cor da minha pele. Há muita gente no Brasil que não gosta de pessoas de cor, que tem vergonha de nós. O Marighella não era negro na pele. Era negro na mente e na alma. Na sua religião, também. Era comunista e os comunistas normalmente não acreditam em Deus. Mas ele sabia o que significava o xangô.
Como é que decorreu a experiência com o Wagner Moura?
Adoro trabalhar com ele. É provavelmente o melhor realizador com quem já trabalhei. Sinto-me melhor ator depois de trabalhar com ele. Ele tem muitos capacidades e nem todos os realizadores as partilham. É muito divertido, quando eu fazia alguma coisa que ele gostava corria para mim e enchia-me de beijos e abraços. Nunca ninguém me tinha feito isso.
O que é melhor para comunicar com as pessoas, música ou cinema?
Música. É mais direta. Se começasse agora a cantar ia senti-lo de imediato. É instantânea, é muito rápido. O cinema exige mais tempo. Mas é um instrumento poderoso. E é engraçado, já fiz mais filmes do que álbuns. Mas a música é mais fácil de fazer, posso ir para o meu quarto de hotel e escrever uma canção. O cinema exige toda uma outra preparação.
O cinema é um meio muito diferente do da música...
Já filmei com o Wes Anderson, estive seis meses em Itália. Vivi em Roma, filmei na Cinecittá, no mesmo estúdio do Fellini. Agora vou fazer um filme com o Willem Dafoe. Sou amigo da Cate Blanchett, do Jeff Goldblum, do Owen Wilson, do Noah Taylor, tanta gente. É incrível conhecer esta gente toda.
Neste momento está a rodar um filme em que interpreta Pixinguinha. Quem era ele?
É a espinha dorsal da música brasileira. Era o 14.º filho de uma família grande. É um herói da música brasileira, sem qualquer discussão. Para o Vinicius de Morais, era a pessoa mais pura do mundo. Era um cantor negro à procura de encontrar o lugar no mundo. O que o Louis Armstrong fazia em Nova Orleâes o Pichinguinha fazia no Brasil na mesma altura. Descobriu o saxofone nos anos 1920 e definiu o que viria a ser a música brasileira.
Tem alguma memória especial de um concerto em Portugal?
De um concerto não, mas tenho memória de uma bela noite na casa de Carminho, cantando "Tristeza não tem fim, felicidade sim". Coloquei isso no meu Instagram. Estava também o Caetano, no piano o Carlos Andrade, eu tocando flauta e a Carminho cantando belissimamente. Eu amo Portugal.
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