Encenador conta como colou Tarantino a Tchékhov. "A vida vai engolir-vos" estaciona esta quinta-feira no Porto.
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Tchékhov "é um sacana", sentencia o encenador Tónan Quito. Parece atrevimento dizê-lo sobre o médico que é um dos maiores escritores de sempre. Mas que dizer então do destemor de condensar numa maratona de dez horas de teatro as quatro peças que o russo escreveu em oito anos (1896-1904), para nos confrontar com as decisões que tomamos e sobretudo com aquelas que deixamos de tomar?
"A vida vai engolir-vos" mistura "A Gaivota", "O Tio Vânia", "Três Irmãs" e "O Ginjal" numa experiência inédita que chega hoje ao Porto, para assistir de forma corrida ou em duas metades (no Rivoli, quinta e sábado; no Teatro São João, sexta e sábado). E por que razão Tchékhov é um sacana?
O que lhe passou pela cabeça para encenar dez horas seguidas de Tchékhov?
Achei interessante fazer as peças de uma assentada pela noite dentro. Usar a noite, onde todos conflitos e ruturas acontecem, como travessia para a mudança. O tempo do espetáculo é o tempo da noite, vai da hora de jantar até às sete da manhã.
Não conta as histórias de forma linear, intercala cena e a atos. Lembra o Pulp Fiction, histórias que se cruzam em analepses e prolepses, sendo que no fim somos compelidos a ordenar cronologicamente as cenas para reconstruir uma linearidade da narrativa. É isso que pretende, obter Tarantino em Tchékhov?
Não quis ser bem comportado e contar uma história pegando nas histórias todas. Quis desafiar-me cruzando-as até ficar com uma amálgama das palavras e das ideias de Tchékhov, em que já não sabemos qual é o personagem ou a peça. Começa de forma estruturada e acaba de forma caótica. É um mosaico. É exigente para o público, mas agrada-me a ideia de labirinto. Todas as pessoas têm os mesmos problemas. Se calhar é pretensioso, mas quis criar um pensamento coletivo, em que cada um está a pensar na sua vida. A pensar sobre a possibilidade de amanhã poder ser um dia de decisões.
Este exercício seguido e salteado pressupõe que pretende dar prioridade à imersão no universo tchékhoviano, nos temas e nos personagens que se repetem, e não tanto à compreensão isolada de cada peça?
Exatamente. Há muitos paralelismos - ciúme, paixão, falta de dinheiro, infelicidade (e muitas diferenças, claro). Todas se passam numa propriedade rural, na Rússia. As pessoas estão fechadas em casa. À espera.
Regina Guimarães escreveu uma vez que o vocábulo russo "gaivota" confunde-se com um verbo que significa "esperar vagarosamente". É isso que fazem as personagens?
Sim. Apanhamos uma fatia na vida delas em que está tudo à espera da morte, ou de tomar uma decisão, ou que aconteça alguma coisa para que a vida melhore. Estão instaladas no tédio, um dos grandes temas de Tchékhov. Há poucas pessoas, no presente, resolvidas. É nessa fratura que aparece o humor. Ele revela-as, também, naquilo que elas têm de ridículo.
"A Gaivota" e "O Ginjal" são apresentadas por Tchékhov como comédias, mas foram encenadas no início, por Stanislavski, como tragédias. Para si, são o quê?
São a tragédia da vida. Com tudo o que isso tem de cómico. Só é cómico porque é trágico. E é muito aí que Tchékhov assenta as suas obras. As personagens são todas trágicas, impotentes, fragmentadas, frustradas, infelizes. Estão no limite. No precipício. Estão numa permanente busca da felicidade e a achar ela só virá daqui a 200 anos. E nunca ali. Talvez em Moscovo, ou noutro lugar qualquer.
Há uns anos a Reduce Shakespeare Company conseguiu fazer "As obras completas de Shakespeare em 97 minutos". O Tónan precisou de dez horas para fazer apenas quatro peças. Apresenta as versões integrais?
Cortei pouca coisa. Cortei dois personagens pequeninos, e um deles custou-me horrores. O resto do texto está na íntegra. Se condensasse o texto, não iria conseguir fazer a experiência que queria. São dez horas, eram para ser 12. Porque gostava que fosse sobre o tempo a passar, sobre o estar. Apetecia-me não ser refém do tempo.
O tempo é essencial nas peças de Tchékhov. Porque parece sempre que quase nada acontece e que toda a vida das personagens é uma longa espera por aquilo que se perdeu ou ainda não alcançou. Como se encena este tempo de suspensão?
Não tive muito tempo para trabalhar isso. O que senti logo é que ele tem imensas pausas e reticências que equivalem a suspensões, a coisas que os personagens podiam ter dito e não disseram. Estão sempre a esconder alguma coisa. Isso faz com que fique tudo mais ou menos em suspenso. E isso vai criando mal estar. Vai criando pequenas apneias: ficamos todos no impasse de que alguma coisa vá acontecer e depois... não acontece. Interessava-me muito não nos precipitarmos, não ir para a próxima cena.
O Tónan é tudo menos um estreante em Tchekhóv, que já leu, interpretou e encenou. É um universo em que se mexe com muito à vontade?
Não é muito à vontade, sabe? Comecei a lê-lo com 20 anos e nunca mais parei. Deixa-me baralhado a pensar no sentido da nossa vida, coletiva e individual, nesta busca da felicidade, nas escolhas que tomamos, nas que não tomamos e naquelas que deixamos que tomem por nós. Inquieta-me. Daí gostar tanto dele e da provocação que me coloca.
Roger Grenier, no livro "Olhai a neve a cair", acabado de editar pelo Teatro Nacional São João, diz que o teatro de Tchékhov "parece uma única história". No fim, diz ele, os personagens voltam todos ao mesmo lugar, "mais mortificados e mais envelhecidos", mas voltam à inevitabilidade de "voltar a viver e esperar".
Tal e qual. É isso. Cada um é uma ilha, um mistério, um segredo. Como nós. Está tudo por revelar. Eles vão-se revelando nas contradições. É profundamente comovente e de uma grande beleza.
Que papel tem o teatro, ou as artes, para sinalizar hoje a consciência sobre o que fazer face à pergunta que surge em várias peças: "Que dirão de nós daqui a 200 anos"?
Não me preocupa. Trabalho sobre o que se passa agora. Nós vivemos numa altura complicada, mas a deles, dos personagens, deve ter sido bem pior. Pessoalmente, nunca tive essa insatisfação com o presente e a projeção de um tempo futuro. Isso não me inquieta. Tenho uma filha e quero cuidar dela para que, quando chegar a altura de ela poder intervir e transformar e procurar a sua felicidade, tenha a coragem e a liberdade para o fazer. Para transformar alguma coisa numa coisa melhor. Isso sim, preocupa-me.
Vive no agora e sem essa inquietação de uma qualquer revelação póstuma.
Não. Estou a sobreviver. Como o próprio Tchékhov, um sacana que nos diz que o futuro vai ser melhor, mas que até lá temos de nos aguentar. E, no fim, a felicidade pode não acontecer. "A vida vai engolir-vos" é esta coisa de agora estarmos a ser engolidos mas se calhar, no futuro, podermos ser lembrados por termos passado esta fase da pandemia. Tomara que todos consigamos construir uma coisa melhor. Ou não. Mas esse gesto, essa vontade que as personagens têm, é o que as faz continuar. Porque elas podiam ser só pessimistas, ponto final. Mas não. São pessimistas mas têm piada. São pessimistas, mas têm esperança. São pessimistas mas bebem e estão uns com os outros. Não estão sozinhos. Há uma necessidade de sobrevivência a partir do outro. E isso é muito comovente.
As personagens falam do futuro quase com lirismo mas na verdade contêm sempre um pessimismo irredutível. Consegue posicionar-se entre estas duas atitudes?
Não posso escolher, porque se não a minha vida era diferente e eu fazia outra coisa, vivia de outra maneira. A beleza de Tchékhov é estarmos sempre nesse oposto: "estou mal agora, mas sei que isto vai ser bonito no futuro". Por isso, não consigo tomar partido. A nossa vida é triste, é fraturante. Eu, Tónan, tenho uma sorte dos diabos! Sou um privilegiado, faço isto desde os meus 14 anos e não consigo imaginar a minha vida de outra maneira, apesar de estar estourado. E ainda me divirto. Mas quantas pessoas há por essa Rússia fora que sabem lá porque é que existem? Isto destroça-me. Se todos nós, no tempo da nossa vida, pudéssemos descobrir qual é o nosso talento, aquilo para que nascemos!... Temos uma vida curta de mais para isso, se calhar. E essa é a tragédia. Assim, vamos sendo cómicos e trágicos, pessimistas e otimistas. E sonhamos. Essa capacidade que Tchékhov coloca nas personagens dele é o que faz com que eles continuem. Outros dão um tiro na cabeça.
Grenier sublinha que essa capacidade também serve para acentuar a infelicidade. Quando diz: "Ele, que não acredita em nada, as faz[as pesonagens] dizer uma última palavra de esperança, isso é uma maneira ainda mais cruel de nos fazer alcançar a evidência da infelicidade."
Sim. Ou quando se ouve: "Descansaremos. Quando morrermos, nós vamos descansar. Mas até lá temos de os aguentar." Isto é muito triste. Aí, nas retas finais, ele é mesmo um sacana. Nós não estamos felizes, mas estamos a contribuir para os nossos netos e bisnetos virem ser felizes. Mas depois também alguém diz: "Se nós soubéssemos, se nós soubéssemos...". É uma incógnita. É muito triste. Há ali o sentimento de um mundo novo que está a surgir, este sentimento de que a Rússia estava em transformação, a industrialização estava muito forte, muita gente a vir para a cidade, o tempo a avançar muito rapidamente, como nós aqui com estes aparelhos todos eletrónicos. E Tchókhov sentia que estava uma revolução para acontecer, um tempo novo à porta. Mas acaba efectivamente por meter ali uma âncora muito dura. No fundo, é uma incógnita. No fundo, é um grande "não sei". Se nós soubéssemos que na morte vamos descansar.... Ao mesmo tempo, ele está a alertar-nos para o presente: só transformando o presente é que o futuro poderá ser luminoso. É um autor muito complexo.
Tem a secreta esperança de, com este trabalho, espicaçar o público para a mudança?
Não tenho essa pretensão, apesar de isso estar no texto. Basta que reflita sobre isso, sobre a possibilidade de o dia de amanhã poder ser um dia de decisões.