A ausência de toques e de abraços, de carinho e amor na infância e na idade adulta trazem muito mais do que apenas tristeza, produzem lesões cerebrais e desajustes na saúde física relevantes. Quem o diz é o médico e neurologista Mario Alonso Puig, que acaba de lançar em Portugal o livro 'Reinicia a Tua Mente'. Autor quer explicar como se pode reverter o processo a partir da neurociência
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Mais do que pensamento positivo, o neurologista e especialista em neurociência Mario Alonso Puig quer demonstrar que a consciência, as decisões, a atenção e a pele - sim, a pele - são fatores decisivos para uma vida mais autoconfiante e mais livre das crenças da infância. "Quando uma pessoa se vai distanciando emocionalmente dos demais pela própria natureza do ser humano, isso produzirá desajustes muito importantes. Por exemplo, o sistema imunitário funciona muito pior, somos mais suscetíveis a infecções e tumores. Em segundo lugar, ativa-se o sistema nervoso simpático, porque me sinto incomodado diante da presença de alguém, então não estou relaxado, não estou confortável, estou à defensiva. O sistema nervoso simpático quando ativado dessa maneira produz uma grande deterioração no corpo", detalha o especialista em entrevista à Delas.pt
Puig diz mesmo que "muitos assuntos que hoje são tratados pelos psiquiatras com medicamentos resolver-se-iam se as pessoas tivessem mais afeto, se se sentissem mais próximas, menos sós, menos ameaçadas pelo juízo de outra pessoa: se me vai incluir ou não, se me vai aceitar ou não". Numa conversa longa, Mario Alonso Puig deixa ainda estratégias para pais e filhos e para mulheres recuperarem a sua autoconfiança tendo por base um eixo: a atenção e o foco que decide aplicar definirão o que será capaz de alcançar na vida.
Escreve no livro que "o maior obstáculo ao nosso crescimento não está fora mas dentro de nós". O que, como mulheres, fazemos mal?
Bom, quando somos pequenos, muito pequenos, o nosso mundo é fundamentalmente sensorial e afetivo. Conhecemo-lo através dos nossos sentidos e das emoções que temos. São as nossas mãozinhas que se estendem para tocar as coisas, gerando um mundo fundamentalmente baseado nesses dois canais: sentidos e emoções. Conforme vamos crescendo, começa-se a desenvolver a capacidade linguística. A linguagem é, muitas vezes, interpretada como uma descrição simples: um livro, um telefone, uma chávena de café. É verdade que essa função é cumprida, mas a língua tem outra função muito mais importante porque ser humano é capaz de estabelecer o tipo de relação que cria com algo. De volta a essa época de infância e criança, começamos a fazer interpretações das coisas, que não se fazem sem linguagem. Então, essas interpretações podem ser convertidas para nós no que se chama de crenças, que são para nós certezas absolutas, não as questionamos. Então, se a uma menina se diz, não podes, ela acredita que é verdade. E quando assim é, é capaz de modular toda a sua percepção, toda a sua forma de interpretar as coisas com base nessa crença. Vamos supor que esta menina, agora adolescente, não consegue algo. Pensará que não vale o suficiente. Se a crença é muito profunda de que não vale, dirá, bom, é que isso era tão fácil que qualquer um poderia fazer. Não desafiará a crença básica.
Quer que este livro seja lido por pais e mães quando educam a suas crianças?
Quando escrevi Reinicia a tua Mente, o meu objetivo era esse, ajudar os pais, as mães, as crianças em geral, os professores, os educadores e levá-los a entender como podem transformar aquelas condutas que ou não estão a ajudar nada na vida ou realmente estão a prejudicar. Por isso, há uma meditação que é essencial no livro que se chama Encontre a sua verdadeira grandeza. Exponho os processos profundos da mente que fazem com que nós vejamos o mundo que vemos, que nos relacionemos connosco como o fazemos, que nos relacionemos com os demais como o fazemos. Se a pessoa conhece e entende o que está a passar com ela, então consegue superar. Se muda o que pensa sobre si, vai mudar toda a sua forma de ver e atuar. O passado não tem que determinar o futuro num ser humano.
Como nos ensinamos outra vez?
Se tem a consciência e se entende que não há nada de defeituoso em si. Se tem coisas que adquiriu do ambiente que não estavam a fazer bem, com essa nova perspectiva é possível mudar. Por exemplo, uma criança que foi criada num ambiente muito violento, qual é o problema? O problema é que chegou um momento em que essa criança foi levada a crer que se lhe acontece é porque o merece. Não lhe ocorre que os pais não estão bem, que eles têm um problema, têm esta natureza ou esta conduta violenta. Ela crê que há algo nela que está mal. E claro, há pessoas que encontram um enorme alívio quando se dão conta de que são seres merecedores de amor, de respeito e de carinho, e que o problema não está neles. Então, isto não serve para culpar as pessoas que o fizeram, mas para ajudar a decidir que não vai gerar o mesmo sofrimento em seu futuro. É uma decisão sua.
"Se a mulher acha que não vale o suficiente, ela não se atreverá tanto na vida"
A violência doméstica assistida na infância corre o risco, segundo dados conhecidos, de ser reproduzida na idade adulta. Como inverter este ciclo a partir da neurologia.
O que pode interromper este ciclo, num primeiro ponto, é a informação que ajude a entender o que foi vivido, começando depois a distanciar-se, a entender o lugar de julgamento. É diferente compreender e julgar. O segundo passo é entender que se tem a capacidade real de transformar a vida, mesmo que toda a gente não sinta, não experimente. Procuro transmitir essa convenção de um lugar que é a ciência para que não pense que são belas palavras. O que foi demonstrado é que quando realmente a pessoa diz a si própria que vale a pena, que é uma mulher cheia de capacidades, de talentos, que precisa de ser feliz e começa a agir a favor, e não contra, então começa a dar esses pequenos passos rumo a uma nova direção, e tudo começa a mudar.
Por exemplo, os programas para recuperação de agressores são suficientes para interromper um ciclo?
É uma grande pergunta. Fiz, há alguns anos, uma conferência para jovens que estivessem em um reformatório. Alguns cometeram assassinatos e não estavam na prisão devido à idade. Estes jovens começaram a transformar o seu olhar, mas o problema é quando eles voltam para suas famílias, que muitas vezes não favorecem a nova conduta, e eles voltam ao que faxiam antes. Então, os formadores deste centro também estão a educar as famílias. Tem de haver uma educação do núcleo familiar, não tenho a menor dúvida. Se essa pessoa, quando sai da aprendizagem, regressa a um lugar onde estão as velhas condutas, vai voltar a fazer. E porquê? Porque o ser humano tem necessidade de se sentir incluído no grupo. Se você não incluir o grupo, você sente que vai morrer. Está sozinho. Então, outra vez, tem que portar mal para ser dos seus. Esse é o problema, há que educar, há que ajudar a ver o que é correto, não apenas para a pessoa que cometeu o delito, mas para todo o núcleo ao redor.
A psicoterapia pode ajudar ou acredita que a ciência tem outros processos que podem ajudar mais?
Acredito que, na vida, todos, em diferentes momentos, precisamos de ajuda. Às vezes, a ajuda pode vir de um livro, de uma pessoa - um amigo, um familiar, a namorada, psicólogo, um psicoterapeuta, um filósofo. Não há ninguém que consiga avançar sem ajuda. Não há que ter vergonha e medo de partilhar com pessoas de confiança em vez de guardar para dentro. E o simples ato de partilhar já te ajuda a ter uma perspetiva diferente. Isto é, em geral, muito melhor para as mulheres do que para os homens.
Foto: Asis G Ayerbe
Porquê?
Eles crescem com a crença de que partilhar o mundo emocional é para os que não têm força. Quando uma pessoa, seja homem ou mulher, partilha o seu sentimento com alguém de confiança, imediatamente há um alívio, há uma melhoria. Se a mulher acha que não vale o suficiente, ela não se atreverá tanto na vida. Se um homem acredita que expressar seu mundo emocional realmente não deve fazê-lo, poderá ser uma pessoa que sofrerá por não conectar seu mundo emocional com outras pessoas.
No livro, levanta a questão da pele e do toque como forma decisiva de educação e autoestima: a importância do toque entre as pessoas. Quando temos crianças cada vez mais pequenas isoladas num telefone quais são os riscos de não ter o contato de pele?
O embrião tem três folhas: ectoderme, mesoderme e endoderme. Da primeira sai o sistema nervoso e a pele. Por isso, a carícia, o abraço, o calor do ambiente gera maturidade no sistema nervoso. A falta de carinho e de proximidade produz, estruturalmente, lesões no cérebro. Precisamos de voltar a esse ponto no qual não só se diz a uma pessoa que ela é importante e que a queremos, e que a fazemos sentir isso mesmo. Para isso é necessário um abraço, uma carícia. Nos Estados Unidos, por exemplo, onde vou com frequência, os psicólogos e os psicoterapeutas estão muito preocupados com solidão e distância entre as pessoas. Mas estão com tanto medo das denúncias. Na verdade, estão bloqueados. Contaram-me o caso de uma menina, neste caso de um colégio, que correu para se abraçar à professora, mas esta disse-lhe que não tinha permissão para lhe tocar.
"Não se consegue construir ou recuperar uma autoestima saudável se não gerir o foco onde coloca a atenção"
Como resolver os problemas que existem com abusos, de toques inadvertidos, de falta de consciência com esta necessidade de toque para evoluir. Como equilibrar?
Esse é o grande desafio. Toda a gente sabe perfeitamente distinguir o que é acariciar uma pessoa como puro afeto ou fazer outra coisa. Não podemos fazer uma regra para toda a gente. O ser humano é um ser de encontro, é um ser de contato. Claro, que a distância tem repercussões muito negativas na saúde.
De que tem medo no futuro com este afastamento?
Quando uma pessoa se vai distanciando emocionalmente dos demais, isso produzirá desajustes muito importantes. Por exemplo, o sistema imunitário funciona muito pior, somos mais suscetíveis a infecções e tumores. Em segundo lugar, ativa-se o sistema nervoso simpático, porque me sinto incomodado diante da presença de alguém, então não estou relaxado, não estou confortável, estou à defensiva. O sistema nervoso simpático, quando ativado dessa maneira, produz uma grande deterioração no corpo. O quadro chama-se stress crónico. Por outro lado, quando uma pessoa se sente conectada com os demais, se sente próxima, com vínculo afetivo, o coração entra num ritmo especial que se chama coerência cardíaca, que está associado a uma melhoria no conjunto do organismo. Não só melhora o funcionamento cerebral e o sistema digestivo, libertando uma hormona que se chama DHEA, que faz trabalhar as glândulas suprarrenais e que favorece o rejuvenescimento. Melhora a massa óssea, a muscular. Por isso se chama o hormona da eterna juventude. Então, tudo isso se perderá com a desconexão. Muitos assuntos que hoje são tratados pelos psiquiatras com medicamentos resolver-se-iam se as pessoas tivessem mais afeto, se se sentissem mais próximas, menos sós, menos ameaçadas pelo juízo de outra pessoa: se me vai incluir ou não, se me vai aceitar ou não.
Há a solidão e há também a solidão tendo tanta gente à volta. Qual o impacto disso?
Hoje em dia há dois males sobre os quais temos de por um remédio muito rápido, porque as consequências não são nada boas. O primeiro é a desconexão do que estamos a falar, a solidão: estar em uma cidade tão grande como Lisboa e sentir-se completamente sozinho. Quantas pessoas te rodeiam, mas como te sentes tu? E o segundo é a falta de atenção, a distração com que as pessoas vivem. Estás aqui a conversar, mas estás sempre ao telefone, por exemplo. A distração tem efeitos muito negativos na saúde, nas relações, porque estamos frente a frente para conversar, mas fica a solidão. É verdade que a pessoas está aqui, mas não está comigo, está nas suas coisas. É preciso trabalhar muitíssimo a distração. Há pouco tempo estive no Japão e impressionou-me que criaram o Ministério da Solidão para tentar reduzir, parar, solucionar o tema tremendo da solidão. Existem em muitos outros países e no Reino Unido também há iniciativas dessas características. É um tema muito sério. Se se soma a distração que existe com falta de vínculos... temos de solucionar isto porque, se não, cada vez as pessoas vão estar mais medicadas, mas não vão resolver praticamente nada.
"Se eu só prestar atenção aos defeitos, vou criar um ser defeituoso"
Como você entende a Inteligência Artificial em todo esse processo?
A IA é um grande enigma em tudo o que será capaz de fazer porque nem sequer os próprios criadores sabem quais serão as fases seguintes. Pode ser uma grande ajuda se usarmos a forma correta. Se não a usarmos de forma correta pode diminuir nossas capacidades.
Neste caso da solidão e do afeto, como pode ser bem utilizada?
Presidi um centro universitário, numa universidade internacional, e sabemos o que acontece. Eu posso, com a minha capacidade crítica, aprofundar um tema com a IA, e ela é convertida numa espécie de tutor-mentor. Se alguém apenas a usa sem outras capacidades, então os primeiros serão cada vez mais inteligentes e os segundos, menos. O que não se usa, perde-se e o caminho fácil não é o correto. Se o fizermos, estamos a perder capacidades cognitivas e emocionais. Estamos num momento determinado em que diremos: a IA roubou-me as minhas coisas. Não, não roubou, entregaste-as. Imagine agora o tema da empatia. Imagine que deseja empatizar com um amigo que perdeu um ser querido. Posso pensar o que lhe posso dizer e que realmente o pode ajudar nesses momentos tão difíceis? A IA diz-me o que tenho de dizer para que ele tenha algum consolo. Atrofia as capacidades mentais ou leva à expansão? Posso usar a IA para melhorar as minhas capacidades. Mas se elas forem entregues à IA, então não posso queixar por já não saber fazer.
"Se muda o que pensa sobre si, vai mudar toda a sua forma de ver e atuar"
Se tivesse que passar uma receita médica para pais ajudarem as crianças, o que sugeria?
Primeiro, faça com que os filhos sintam que o carinho que lhes tem não depende de comportamento deles. Gostará igualmente, sejam eles bons ou não. O pior castigo que uma criança pode receber é sentir que os seus pais já não o querem. Em segundo lugar, sejam coerentes. Que não digam aos seus filhos que façam uma coisa mas depois [os pais] façam o contrário. Em terceiro lugar, abracem-nos, que eles sintam por todos os canais que eles são muito importantes. Em quarto lugar, ajudem-nos a focar-se no que podem aprender com os erros. Não converta um erro numa base de castigos, mas numa base de aprendizagem. Acredito que a soma destas quatro coisas faz com que os filhos notem que são uma prioridade para os pais.
O mesmo exercício, mas para uma mulher adulta que duvida de si mesma.
Num de meus livros, há uma pergunta que ajudou muitas pessoas e que é: "Qual é o passo mais pequeno que me atrevo a dar?" Essa mulher tem que dar pequenos passos a cada dia, que mostre evidências de que é capaz. Ninguém pode dar os passos para ela. E há um momento em que essa pessoa tem que colocar o foco, não no que não faz bem, mas em tudo o que fez bem. O problema da atenção é que está muito orientado pelas nossas crenças. Se eu acredito que não sirvo, estou-me sempre a concentrar nas provas de que não sirvo. É preciso mudar a mira. Por isso, quando chegue ao final do dia, em vez de se deixar envolver pela ideia de que não serve, que pense antes nas coisas que mostrou hoje claramente que conseguiu. Que procure até as coisas mais pequenas. Porque quando começar a girar a atenção, vai girar todo o seu mundo. Onde pomos a atenção é onde vamos. Se eu só prestar atenção aos defeitos, vou criar um ser defeituoso. Se você vê os defeitos, porque os tem, mas põe a atenção nas virtudes, cada vez os defeitos serão mais pequenos e as virtudes maiores. Não se consegue construir ou recuperar uma autoestima saudável se não gerir o foco onde coloca a atenção.