Atendeu a chamada do JN na ressaca da conquista da Liga do Qatar, título com o qual igualou os registos de Artur Jorge e Vítor Pereira, como campeão em três países de diferença. Com 45 anos de carreira e quase 73 de idade, sobram-lhe as medalhas, mas o treinador Jesualdo Ferreira não dá o percurso por terminado.
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Portugal, Egito e, agora, Qatar: que título de campeão lhe deu mais prazer conquistar?
Todos os títulos têm sabores diferentes. Costumo dizer, por graça, que uns sabem a laranja, outros a banana e outros a morango... Mais a sério, o primeiro campeonato que ganhei, no F. C. Porto, foi talvez aquele que mais me tocou, o que mais me marcou, mas também fui duas vezes campeão no Benfica, como adjunto. Aqui, no Al-Sadd, foi muito difícil, devido às condições que tivemos. Começámos a jogar em agosto, com temperaturas de 50 graus, depois houve umas interrupções por causa da seleção nacional que nos levou dez jogadores... Foi um percurso muito cheio e os grandes vencedores desta campanha foram os jogadores. Era o título que nos faltava, foi uma vitória construída degrau a degrau.
Falta a Liga dos Campeões asiática. Quais as perspetivas para essa prova?
Esta Champions é completamente diferente da europeia, porque começa numa época e acaba noutra. Na última edição chegámos à meia final e um penálti muito duvidoso tirou-nos a possibilidade de chegarmos à final e, provavelmente, até ganhá-la. Estou convencido de que éramos a melhor equipa da Ásia. Este ano, a fase de grupos começou em fevereiro e vai até maio e, na próxima época, recomeça com as eliminatórias. Ou seja, podem haver mudanças de treinador, como acontecerá aqui, no Al-Sadd, mudanças de jogadores, e isso é desmotivante.
Voltando ao título, igualou os registos de Artur Jorge e Vítor Pereira ao ser campeão em três países diferentes...
[interrompe]... E dos treinadores portugueses só Mourinho fez melhor, vencendo em quatro, mas há aqui um dado curioso.
Diga.
Confesso que fiquei surpreendido com esse apontamento, não fazia a mínima ideia que recolhiam esse dado estatístico, mas há uma coisa curiosa. Nenhum deles ganhou em três continentes diferentes.
Verdade. O professor ganhou na Europa, em África e, agora, na Ásia.
Já agora, ponha lá essa: só eu fui campeão em três continentes.
Agora que vai terminar a ligação ao Al-Sadd, vai tentar a sorte, por exemplo, num campeonato do continente americano para tentar fazer o pleno?
Não, isso fica muito longe.
Mas já tem algum projeto em vista para abraçar no pós-Al-Sadd?
Não. O que tenho para mim como futuro próximo é continuar no Qatar, mas não no Al-Sadd. Quando prolongámos o contrato foi precisamente para fazer mais um ano aqui, para deixar as coisas em melhores condições, promover ainda mais jogadores e para ganharmos o campeonato. Depois o Xavi será o treinador. Era uma situação anunciada. Após ganhar tudo isto, não fazia muito sentido eu sair, mas isto já estava previsto, o projeto era esse. Foi assim que foi definido e eu aceitei. De qualquer forma, sinto que vou continuar no Qatar, tenho família cá, gosto de estar aqui. Vou continuar a viver mais uns meses ou até mais um ano, se surgir um projeto interessante.
Já leva 45 anos como treinador.
Comecei em 1974, na Federação Portuguesa de Futebol, como treinador das seleções juvenis. Fiz as seleções todas até à principal, onde fui adjunto do Artur Jorge.
Precisamente. Sente que, numa carreira tão marcante, lhe falta ser o selecionador principal de Portugal?
Sinceramente, não sinto. A seleção está muito bem entregue. A escolha que foi feita, na altura, pelo presidente Fernando Gomes, com muita segurança e confiança, acabou por ser muito boa, porque o Fernando Santos levou a seleção ao primeiro grande título sénior de Portugal. Respondendo à pergunta, não acho que me tenha faltado nada para estar agora sossegado e terminar a carreira quando for caso disso. Mas se me perguntar se gostaria de ter sido selecionador nacional, diria que sim, mas o facto de não ter sido não me deixa desiludido.
E, neste momento, o que o move em termos profissionais? A questão financeira pesa?
Os meus contratos nunca foram discutidos em termos de verbas. A mim, o que sempre interessou foi o projeto. O resto vinha por acréscimo. Quem me conhece sabe que é verdade e que não estou nada arrependido. Mas também tenho de concordar que, de outra forma, se tivesse outro feitio, outra forma de estar no futebol, poderia ter tido mais e melhores condições financeiras.
Podemos presumir, então, que continua no futebol por paixão.
Você acha que, com quase 73 anos, se não tivesse paixão pelo futebol ainda estava a treinar? Ainda para mais no Qatar, com uma cultura destas?
Aproveitando a deixa, de todos os países onde já treinou, qual foi aquele em que sentiu maiores dificuldades no que diz respeito à adaptação a uma cultura diferente?
Estive em África, na seleção de Angola, em Marrocos... Também estive, por exemplo, na Grécia, mas aqui, no Qatar, talvez pelo facto de já ser mais velho e ter menos paciência, foi aqui que senti maiores dificuldades de adaptação. Mas nada que não tivesse ultrapassado com alguma facilidade. Estou há muitos anos fora de Portugal, nem sei se ainda tenho aí alguma casa [risos]. Foram adaptações permanentes, isso oferece-nos uma grande capacidade de relativizar as coisas. Já me sinto em zona cómoda estando só.
Certo é que, por onde passa, é sempre muito apreciado. Como recebe elogios de jogadores como Hulk ou Falcao, que falam de si como um pai futebolístico?
Vou repetir o que digo em circuitos fechados: o reconhecimento dos meus jogadores são as minhas medalhas, nada é mais intenso do que isso. Sabe, meu querido, tenho para mim que a gratidão é o sentimento mais nobre. E quando essas manifestações acontecem não são mais do que pequenos atos de gratidão, de reconhecimento, tenho que dizer que... são as minhas medalhas, é isso que me identifica como treinador. Se puder ganhar, felizmente como tem acontecido, então são medalhas duplas. Quando ganhámos alguma competição temos sempre uma medalha, até dão medalhas a quem perde. A verdade é que gosto muito de ganhar, mas tenho sempre a grande preocupação de sentir os meus jogadores felizes.
Recebeu essa medalha, por exemplo, de Xavi?
O Xavi já deu várias entrevistas, não sei se as ouviram ou não, onde refere a consideração e o respeito que tem por mim, e isso é recíproco. Ele também refere que acabou por ter uma relação boa comigo, porque aprende muitas questões que ele entende que são fundamentais num treinador.
Agora, o campeonato português. O que lhe parece que vai acontecer?
Que vai ser uma luta a dois até mesmo ao fim. Já não há direito a erro, porque já não sobra tempo para recuperar. Quem errar agora, seguramente vai perder o campeonato. O F. C. Porto tem uma vantagem, que é a de ter sido campeão no ano passado, e o manto que veste o campeão tem uma influência muito grande nos jogadores e nos adversários. Mas o Benfica tem a vantagem do confronto direto. É assim que estão as coisas.
Tem uma opinião formada sobre Conceição e Lage?
O Lage ainda tem pouca experiência, o Sérgio já tem mais, o Sérgio já é campeão, o Lage não. Portanto, há uma diferença muito grande entre os dois. A verdade é que o Bruno Lage foi capaz de virar uma página importante no Benfica e o mérito tem de ser reconhecido. Se for campeão, ficará na história do Benfica, mas não reconhecer o trabalho de Rui Vitória é uma tremenda ingratidão. É inaceitável que a passagem do Rui Vitória pelo Benfica não seja vista por sócios e adeptos como uma passagem de alguém que foi capaz de ganhar títulos e que garantiu, esta época, a presença do Benfica na Liga dos Campeões, onde colocou, de uma forma muito profissional, 40 milhões de euros nos cofres do Benfica. Não se pode ser ingrato.
Jesualdo Ferreira:
Data de nascimento: 24/05/1946 (72 anos)
Nacionalidade: Portuguesa
Títulos: Campeão de Portugal (três), Campeão do Egito, Campeão do Qatar, Taça de Portugal (duas), Taça do Egito, Taça do Qatar, Supertaça de Portugal , Supertaça do Qatar