Número de estrangeiras a jogar em Portugal aumentou exponencialmente. Aspetos culturais, orçamentos maiores e profissionalismo são explicações.
Corpo do artigo
Apesar dos esforços escandalosos e imperdoáveis de alguns, não há travão que atrapalhe o crescimento do futebol feminino em Portugal, evidente e imparável desde há uns anos. Entre os dados que o sustentam está o aumento, quase repentino mas descomunal, de jogadoras estrangeiras na liga portuguesa. Há 10 anos, eram apenas cinco; em 2017/18, não passaram das duas dezenas (16); e esta temporada, de acordo com dados recolhidos pelo JN, são 88, sendo que ao longo da época passada foram mais de 100 as que disputaram jogos do campeonato."Hoje já se consegue viver apenas do futebol em Portugal, algo que há uns anos era impensável", resume Daniela Lopes, ex-jogadora e agora empresária.
A aposta de alguns dos melhores clubes portugueses terá sido o gatilho principal. A bola de neve não parou de crescer e praticamente obrigou outros a aumentarem os investimentos e a melhorarem as condições de trabalho. "Os clubes que antes não pagavam nada agora estão a tentar profissionalizar-se e fazem esforços grandes para acompanharem o crescimento. Agora, para além do salário, já é normal disponibilizar casa, suportar a alimentação e viagens. Os que pagam salários mais baixos tentam oferecer outras coisas", salienta Raquel Sampaio, ao JN. A empresária, também ela ex-jogadora e testemunha privilegiada deste crescimento, aponta ainda a questões culturais e sociais: "A nossa cultura, o estilo de vida, a disponibilidade para falarmos outros idiomas se for preciso, ao contrário do que acontece noutros países. Estando fora de casa, elas sentem-se bem aqui".
O facto de "os clubes já terem departamentos de scouting só direcionados para o futebol feminino" é outro ponto destacado por Daniela Lopes, que acompanha Raquel Sampaio na ideia de que o aparecimento de agentes também facilita o recrutamento: "A ponte de contactos é cada vez maior e mais fácil a todos os níveis", explica.
Número de equipas quase duplicou
Dados oficiais da Federação Portuguesa de Futebol não deixam dúvidas: nos últimos anos, o futebol feminino em Portugal tem crescimento como nunca. No prazo de 10 anos, o número de praticantes passou de pouco mais de 2000 para mais de 8000 (na época passada, eram 8083). Também o número de clubes com equipas femininas quase duplicou, passando de 151 em 2011/12 para 279 em 2021/22. A evolução é evidente, mas Raquel Sampaio ainda não está totalmente convencida de que a aposta veio para ficar. "Já há três divisões séniores e um número crescente de clubes, mas o que noto é que se não houver sucesso imediato o projeto não dura. A aposta existe, mas falta continuidade", diz a empresária.
Reportagem
Tal como uma boa parte das estrangeiras que disputam a liga portuguesa, também Caroline Kehrer tem um passado significativo no futebol universitário dos Estados Unidos. A par do brasileiro, o mercado americano é um dos preferidos dos clubes portugueses, com oito das 12 equipas do campeonato a contarem com futebolistas das duas nacionalidades ou que passaram pelos dois países numa altura precoce da carreira. "Para uma brasileira, convém não levá-las para um contexto muito diferente do que estão habituadas e nesse sentido Portugal é o ideal", diz Raquel Sampaio. "Por questões culturais, a vinda delas foi sempre mais facilitada", subscreve Daniela Lopes. Fátima Dutra, jogadora canarinha do Sporting, confirma: "A língua é a mesma e isso ajuda-me".
Portugal sempre foi um país onde quis jogar
Por outro lado, a atenção dispensada ao mercado americano tem, obviamente, outras razões, mas que demonstram o salto que o futebol feminino português tem dado até no que diz respeito ao cuidado com os detalhes. "Quando acabam o "college", procuram o primeiro contrato e nessa altura são mais acessíveis". Caroline Kehrer foi descoberta assim pelo Aalborg (Dinamarca). Seguiu para o Ferencvaros (Hungria) e na época passada juntou-se ao Torreense, de onde saiu para o Braga, cumprindo um desejo antigo. "Portugal sempre foi um país onde quis jogar. No Canadá, o meu treinador era português e sempre me falou da paixão que os portugueses têm pelo futebol. Quando comecei a minha carreira, Portugal era o país para onde eu sabia que tinha que ir", afirmou ao JN.
Kehrer, avançada, é uma das dez jogadoras estrangeiras que fazem parte do plantel do Braga (tantas como Famalicão e Damaiense). É a única canadiana, mas tem companheiras dos Estados Unidos, dos Países Baixos, dos Camarões ou de Israel, para além do Brasil, claro. "Está a ser uma experiência maravilhosa. A liga continua a crescer e tudo continuará a melhorar", realçou.
Entrevista
O que pesou mais na decisão de escolher o campeonato português para prosseguir a carreira?
A oportunidade de representar um clube como o Sporting era boa demais. É uma honra vestir a camisola de tantas lendas. O clube tem a ambição de competir a nível internacional e eu queria fazer parte de um projeto onde esse fosse um objetivo.
O estilo de vida e a cultura do país também foram fatores importantes?
São aspetos muito atrativos. A cultura e o estilo de vida é algo pelo qual estou totalmente apaixonada. A vida fora do futebol é importante para quem vem de fora, queremos estar em lugares que nos dão uma boa casa longe de casa. A simpatia das pessoas, a natureza, as cidades e a comida incrível tornam a vida aqui muito melhor.
O que mais a surpreendeu no campeonato?
Os adeptos. É incrível jogar em frente de adeptos tão apaixonados, eles também têm tornado esta experiência especial. Também quero dizer que os adeptos das outras equipas têm sido sempre amigáveis, respeito muito esse desportivismo.
A liga é atrativa, desportiva e financeiramente?
Ainda há espaço para crescer. A competição é boa entre algumas equipas, mas é preciso que todas atinjam um determinado nível para o campeonato se equiparar a outros. Do que sei, os salários das futebolistas podiam ser melhores, mas acredito que isso aconteça com o tempo. É impossível ignorar que se deve investir no futebol feminino.
O que mais é necessário melhorar?
Por exemplo: melhorar a visibilidade da liga fora de Portugal. A minha família e os meus amigos não podem ver os meus jogos, é frustrante. O apoio dos portugueses é evidente e está definitivamente presente, portanto, construir melhores recursos entre os clubes para atrair mais jogadoras e uma audiência maior parece-me um próximo passo natural.