Comprar comida mais barata e abdicar de refeições fora de casa, de idas ao cinema e de escapadinhas. Retratos de portugueses que veem o apoio de 125 euros como "esmola" e preferem salários maiores.
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A viver com menos do que o salário mínimo ou a receber um pouco mais ao final de cada mês, não há quem não sinta o peso do custo de vida, que, depois de roubar pequenos luxos, obriga agora a esticar os orçamentos familiares, mesmo para o que é essencial: como a renda da casa, a luz ou a alimentação. Ao JN, uma família com dois filhos, uma funcionária pública, um reformado e uma trabalhadora a ganhar a remuneração mínima garantida veem os 125 euros que o Governo dará este mês quase como uma esmola e pedem, em uníssono, a valorização dos salários.
Família com dois filhos
"Já não vamos a qualquer sítio fazer as compras"
Os passeios regulares à praia ou à serra do Gerês, ao domingo, foram substituídos por idas aos parques ou a museus próximos de casa. Os hipermercados foram trocados por superfícies mais pequenas com descontos regulares em bens essenciais e os jantares com amigos são, agora, menos. Paula Pereira e Gabriel Rocha assumem que o peso da inflação "já se sente bastante" no orçamento familiar e, para darem algumas regalias aos filhos, Ema e João, e terminarem as obras da moradia onde vivem em Braga, é preciso "cortar".
"As medidas do Governo, como o subsídio de 125 euros, são gozar com quem trabalha. É preciso leis para ajustar os salários médios"
Paula Pereira começa por lamentar a subida do preço do leite. "Foi um aumento brutal", contabiliza a educadora de infância, confidenciando que o casal já não vai a qualquer local fazer compras: "Descobrimos um supermercado que tem preços em conta, com muitas promoções, e deixamos de ir tantas vezes ao Continente ou Pingo Doce".
Só para os bens essenciais, o marido garante que "já não chegam cem euros por semana, como antigamente". Para o combustível do carro de Paula, "são 30 euros por semana, em vez de 20", adianta Gabriel, que, por ter viatura da empresa, evita mais uma despesa.
Sair para mais perto
Para já, o casal admite que os custos com a energia, a água ou a prestação do crédito à habitação ainda não se alteraram e acredita que, no futuro, não haverá surpresas. "Sempre fomos muito cuidadosos e até fazemos aproveitamento da água da chuva para regar e dar aos animais", conta Paula. Ainda assim, há alguns meses que a vida do casal tem sido feita de restrições.
"Fazíamos passeios à praia e íamos ao Gerês. Agora, tento procurar os parques de Braga, museus e monumentos que façam atividades para crianças", admite Paula. Já Gabriel, que "todos os domingo ia a Viana do Castelo para andar a cavalo com os amigos", agora só o faz "uma vez por mês".
"As medidas do Governo, como o subsídio de 125 euros, são gozar com quem trabalha. É preciso leis para ajustar os salários médios. Daqui a nada, estamos todos a receber o salário mínimo", lamenta o bracarense.
professora
"Salário estagnou e perdemos poder de compra"
Para percorrer os 80 quilómetros diários entre Braga e a escola em Freamunde onde Gabriela Carvalho, 51 anos, leciona Português, a professora partilha o carro com mais três colegas. "É a única forma de conseguir suportar o preço do combustível. O custo de vida não pára de aumentar e o nosso salário estagnou e vamos perdendo, cada vez mais, poder de compra", entende a docente.
Juntamente com o material que precisa para a escola, vai a marmita e o saquinho com o lanche. Tudo para poupar dinheiro. E o aumento de preço é de tal forma transversal que, "na escola, os miúdos queixam-se que as cadeias de comida rápida também estão mais caras ", refere.
"A culpa é da guerra, é disto e daquilo, mas, na verdade, não se vislumbram soluções nem caminhos para equilibrar as finanças"
Comprar a lavradeiras
Nas compras para a família alargada (marido, dois filhos estudantes e sogro reformado), a opção recai cada vez mais nas marcas brancas do supermercado. Os produtos frescos são adquiridos nas "lavradeiras e na praça". "No peixe e na carne, opto pelo mais barato e compro, cada vez mais, no comércio local", frisa a professora, que evita comprar roupa e calçado, reaproveitando o que tem em casa. A prestação do crédito da habitação vai aumentar nos próximos meses. "É mais uma ajuda", ironiza.
"O Governo tem de perceber que é necessário aumentar os salários intermédios, porque quem recebe estes salários fica sempre prejudicado", explica Gabriela Carvalho. "Ao valorizar os salários intermédios, está a valorizar a Função Pública que tem sido muito mal tratada por quem manda", sentencia. Sem querer ser "mal agradecida", a professora diz que os 125 euros que vai receber este mês são "uma espécie de esmola". "Nós, os funcionários públicos estamos sempre a perder dinheiro, poder de compra, qualidade de vida e direitos e, depois, atiram-nos com 125 euros para ver se nos calamos."
Reformado
"Os preços subiram muito, tudo é mais caro"
"Hoje paga-se mais e compra-se menos", é assim que Joaquim Simões, 73 anos, reformado, resume a sua situação económica. Toda a vida foi trabalhador na indústria têxtil e, ainda há pouco tempo, "comprava mercearia para guardar". "Agora, compro um quilo de arroz de cada vez, porque a reforma de 400 euros não chega para amealhar nada". A esposa, também reformada, recebe a mesma pensão.
Desse valor, pagam renda, luz, água, gás e medicamentos. De todas as despesas mensais, os remédios ainda são os mais baratos, "graças ao Serviço Nacional de Saúde [SNS ] e à isenção que temos por sermos pobres".
A renda vai aumentar em breve. A luz, a água e o gás já aumentaram e Simões acredita que a fatura ainda vai subir mais. "Os preços subiram muito, tudo é mais caro". E continua, com indignação: "Falam da guerra como se tudo viesse da Ucrânia ou da Rússia e como se o Governo português não pudesse ser responsabilizado pelas suas opções". Sobre o apoio extraordinário do Estado que vai receber este mês, Joaquim Simões entende que "é para enganar as pessoas". "O Governo dá por um lado, mas tira pelo outro. Que ninguém se iluda com isso", refere.
passar frio no inverno
O filho, emigrante na Suíça, ofereceu-lhes um aparelho de ar condicionado para terem mais conforto. Este ano, com preço da energia, o casal pondera se vai ou não ligar o aparelho. "Há muita gente que vai passar frio no Inverno, porque não tem dinheiro para pagar a luz", augura Joaquim.
"[António Costa] tem maioria absoluta, mas foi a Esquerda que o lançou e apoiou. Parece que está a esquecer-se de quem o elegeu"
O carro velhinho quase não sai da garagem por causa do preço dos combustíveis. "Faço caminhadas a pé que faz bem à saúde e é de graça", diz, a sorrir. À semana e ao fim de semana, são estes os passeios que dá. De resto, roupa e calçado, há anos que não compra nada.
Nas vésperas de ser conhecido o Orçamento do Estado, não esconde o desejo de que contemplasse o aumento de todas as pensões para um valor mínimo de 500 euros e que garantisse a contratação de dentistas para o SNS. "Os idosos têm mesmo que ficar sem dentes, porque não têm dinheiro para ir ao dentista e não há dentistas nos hospitais nem nos centros de saúde."
E deixa um recado a António Costa: "Não se esqueça que foi o PCP que lhe deu a mão, há quatro anos, para que pudesse formar Governo. Agora, tem maioria absoluta, mas foi a Esquerda que o lançou e apoiou. Parece que está a esquecer-se de quem o elegeu".
trabalhadora com salário mínimo
"É altura de deixar o peito e comer as asas de frango"
A receber o salário mínimo, Madalena Almeida, 57 anos, todos os dias leva almoço e lanche para o trabalho. Longe vão os dias que se dava ao luxo de ir almoçar a um restaurante ou tomar o pequeno almoço a uma pastelaria. "Não tenho dinheiro para isso. Até os dois euros que gastava, semanalmente, na raspadinha já têm outro destino", afirmou Madalena. Todos os dias, vai de carro até à estação de comboios de Famalicão, apanha o comboio para Braga e, depois, segue a pé até ao emprego. "Era muito mais prático ir de carro, mas, ao preço que a gasolina está, nem sequer penso nisso."
A renda de casa já aumentou, assim como o gás e a energia. "A carne, o peixe, os legumes e a fruta estão a um preço que ninguém aguenta e eu faço compras apenas para uma pessoa. Nem imagino como é que as famílias conseguem gerir o orçamento", refere.
Das conversa com os amigos, retém a frase dita por uma mãe de dois filhos: "É altura de deixar o peito e as coxas e começar a comer asas de frango, que são mais baratas. Está tudo sem dinheiro e a classe média, que estava na corda bamba, caiu para o lado dos pobres", diz a assistente administrativa.
"Está mesmo tudo sem dinheiro e a classe média, que estava na corda bamba, caiu para o lado dos pobres"
125 euros? são esmola
Até há cerca de um ano, o seu único luxo era, uma vez por outra, ir passar um fim de semana fora. "Estas férias estive dois dias no Gerês e já foi uma maravilha. Agora, o tempo livre é em casa, sem gastar dinheiro", confidencia Madalena.
Além das reuniões familiares com os irmãos, não se lembra de outro momento lúdico, como ir ao cinema ou passear. Sobre os 125 euros que vai receber, "é uma boa medida, mas parece uma esmola. É, claramente, insuficiente". Preferia o aumento do subsidio de refeição ou dos salários. Certo é que a crise não toca a todos por igual. "Há muitas empresas que continuam a ter grandes lucros e que nem por isso aumentam os salários dos trabalhadores, aproveitando o argumento da crise e da guerra", frisa.
Do Orçamento de Estado não espera grandes mudanças. "A Saúde precisa de muito investimento, sobretudo para permitir o rápido acesso nas consultas de especialidade para não obrigar os doentes a recorrer ao setor privado".