Hipótese de os bens alimentares continuarem a subir é grande. Comerciantes cansados de perder lucros.
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Os supermercados, que amorteceram a inflação durante meses e, com isso, perderam margens de lucro, já estão a passar, desde março, a totalidade do aumento de preços nos produtores para os consumidores finais, segundo mostra a ferramenta de monitorização dos preços dos alimentos, desenvolvida pelo Eurostat para todos os países europeus.
Após subidas de preços vertiginosas junto dos produtores desde o início da guerra na Ucrânia, chegando a atingir os 70% nos cereais, por exemplo, a inflação junto dos campos agrícolas tem vindo a baixar drasticamente, situando-se em 20% em março, a mesma inflação que passa para os supermercados e chega ao consumidor final. Ou seja, a grande distribuição, bem como o pequeno comércio, deixaram de amortecer a subida de preços provocados pelos produtores dos bens alimentares.
Desde março do ano passado que a guerra na Ucrânia causou falta de produtos alimentares e matérias-primas e fez com que a inflação fosse muito mais intensa nos campos agrícolas do que nos supermercados, revela a ferramenta do Eurostat.
Ao contrário do que muitos pensavam e diabolizavam, a grande distribuição até amorteceu os preços finais ao consumidor e perdeu margens de lucro para conseguir continuar a vender os produtos. Os números vêm dar razão aos responsáveis da grande distribuição que se queixaram, ainda antes das medidas como o IVA zero, de estarem a ser crucificados na praça pública pelo Governo e, especialmente, pelo ministro da Economia.
Inflação nos 36%
O que aconteceu foi que, nesta crise, os preços dos produtos agrícolas e similares dispararam rapidamente após o início da guerra. A Ucrânia, chamada de celeiro da Europa, mal conseguiu exportar sua produção agrícola, causando uma forte alta nos preços dos produtos alimentares em todos os países do Mundo. E Portugal não foi exceção, com a inflação dos alimentos a atingir o pico em setembro do ano passado, registando uns loucos 36%, quando já em agosto esta estava nos 33,6%. Nunca antes os preços subiram a um ritmo tão profundo desde que existem dados que mostram a intensidade da inflação.
Esta escalada dos preços dos alimentos no produtor não está a ser exclusiva de Portugal. É, aliás, uma tendência registada no conjunto dos países da União Europeia, que em agosto do ano passado foi de 31%, com picos superiores a 40% nas repúblicas bálticas, as mais dependentes das importações da Rússia.
Os hipermercados, supermercados e mesmo o pequeno comércio responderam a este enorme aumento no custo dos alimentos no produtor reduzindo as suas margens de lucro de forma a evitar um impacto total nos seus clientes.
Os dados do Eurostat são demonstrativos disso. Por exemplo, em agosto de 2022, a inflação no preço final dos alimentos em Portugal estava nos 16,4%, ou seja, quase metade do que aumentou na origem, já que os produtores agrícolas, no mesmo mês, subiram os preços em mais do dobro (33,6%).
Outra das conclusões da instituição europeia de estatística é que a indústria agro-alimentar, aquela que faz o processamento das matérias-primas, também conteve a subida dos preços, embora em menor medida, aplicando uma subida de 20%. Essa diferença é muito evidente em alimentos onde os agricultores ucranianos têm maior influência no mercado. Quando as exportações ucranianas desaceleraram, a procura concentrou-se nos produtores nacionais ou da União Europeia, principalmente em Espanha, fazendo disparar os preços. Por exemplo, no caso dos cereais, os preços em Portugal chegaram a subir mais de 70% no verão passado, enquanto o aumento de preço para o consumidor final foi inferior em agosto do ano passado, não passando dos 16,4%. Toda a cadeia absorveu este impacto para que a subida do custo do pão não duplicasse de preço.
Especulação nas frutas e vegetais
Mas quando falamos de frutas e vegetais, os alimentos em que a produção ucraniana não tem qualquer relevância, prova-se que houve um aproveitamento dos supermercados em relação à verdadeira subida nos custos de produção. Apesar de não dar informações sobre a real inflação das frutas e legumes no produtor em Portugal, os dados do Eurostat indicam que os agricultores, por exemplo em Espanha, aumentaram em dezembro passado os seus produtos em 8,6%, mas os supermercados, duplicaram o preço para registar uma inflação ao consumidor de 15,5%.
O ministro da Economia, António Costa Silva, lançou, no início de março, uma forte investida aos supermercados através da Autoridade de Segurança Alimentar e Económica (ASAE), prometendo "ser inflexível" se encontrasse situações anómalas no setor alimentar. Uma ação que nada agradou ao setor, tanto assim que a dona do Continente, a CEO da Sonae, Cláudia Azevedo, enviou uma carta aos trabalhadores preocupada com uma "campanha de desinformação sobre as causas da inflação alimentar, com danos gravosos para a reputação do setor da distribuição alimentar", ressalvando que o grupo baixou as suas margens "para acomodar o aumento dos custos, que também nós sofremos".
A mesma tónica foi seguida pelo presidente do grupo Jerónimo Martins, dono do Pingo Doce, acusando o Governo de fazer "teatro" com inspeções da ASAE, acrescentando que alguns governantes foram "intelectualmente desonestos". Na altura, Pedro Soares dos Santos disse lamentar profundamente as afirmações do ministro da Economia, António Costa Silva, classificando-as como "muito infelizes, de quem anda um bocado fora do mundo real". Segundo o líder do grupo da grande distribuição, o Governo, pressionado pela contestação social, procurou "desviar atenções" e "depois utilizaram a ASAE para o espetáculo".
Compensação aos agricultores
Os dados do Eurostat confirmam também que a inflação dos bens alimentares foi uma forma de compensar os agricultores e a pecuária do esmagamento de preços nos anos anteriores e que, perante uma crise da oferta, aproveitaram a alta de preços nos mercados internacionais. Desde essa altura que os supermercados têm funcionado como amortecedores da inflação, o que não quer dizer que parte do aumento dos custos não tenha sido repassada para o consumidor final, mas não a totalidade. Isso explica porque as margens de lucro que as grandes distribuidoras apresentaram em 2022 ficaram abaixo dos níveis do ano anterior.