Sangue de homem mordido por serpentes mais de 200 vezes usado para criar antídoto
Anticorpos de homem mordido centenas de vezes por espécies mortais de serpentes estão a ser usados para a criação do antídoto mais amplamente protetor até agora.
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O norte-americano Tim Friede, ex-mecânico de camiões do Wisconsion e atualmente herpetologista numa empresa biotecnológica, foi, durante quase duas décadas, mordido mais de 200 vezes por várias serpentes perigosas e submetido, por vontade própria, a mais de 700 injeções que preparou a partir do veneno de cobras, mambas e cascavéis. A intenção inicial era desenvolver o sistema imunitário para estar mais protegido quando pegasse nestes animais para vídeos do seu canal de YouTube, mas o que começou como um projeto individual acabou por tornar-se num veículo para ajudar outras pessoas: a experiência pode levar ao desenvolvimento de um antídoto poderoso.
Um grupo de cientistas está a usar os anticorpos presentes no sangue do norte-americano para desenvolver uma substância "incomparável" e "revolucionária", descrevem respetivamente a BBC e o "The Guardian". “Por um período de quase 18 anos, Tim Friede sofreu centenas de picadas e autoimunizações com doses crescentes de 16 espécies de cobras muito letais que normalmente matariam um cavalo”, explicou Jacob Glanville, diretor-executivo da empresa de biotecnologia norte-americana Centivax e um dos autores da investigação em curso.
“Se alguém no mundo tem esses anticorpos neutralizantes é ele”, pensou o investigador, que decidiu entrar em contacto com o homem. Foi direto ao assunto logo no primeiro telefonema - “isto pode soar estranho, mas eu adorava estudar o seu sangue” -, a resposta foi positiva e o tratamento começou mal houve aprovação ética.
O soro a que os investigadores chegaram, e que combina dois anticorpos protetores do sangue de Friede e um inibidor de veneno molecular, abre caminho para um antídoto universal, de acordo com a investigação publicada na revista "Cell". O estudo pode revolucionar o tratamento de mordeduras de serpentes, que, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), matam anualmente entre 81 mil e 137 mil pessoas e causam cerca de 140 mil a 300 mil ferimentos permanentes.
A maioria dos antídotos de venenos baseia-se num método antigo que envolve a imunização de cavalos ou ovelhas com veneno de uma única espécie de cobra, com a posterior recolha dos anticorpos produzidos. Mas, embora eficazes, comportam o risco de reações adversas graves e tendem a ser específicos para cada espécie (às vezes até para a mesma espécie em regiões diferentes).
Coleção de serpentes
Ciente das deficiências dos antídotos e esperando fortalecer-se contra ataques acidentais da sua coleção de dezenas de cobras de estimação, Tim Friede embarcou numa louca mas consciente busca pela autoimunização em 2000. Apesar de, no ano seguinte, ter passado quatro dias em coma, após ser mordido por uma naja-egípcia, o agora diretor de herpetologia (ramo da zoologia dedicado ao estudo dos répteis e anfíbios) da Centivax continuou com o seu meticuloso plano, injetando baixas doses de veneno de 16 espécies letais, antes de oferecer os seus braços às serpentes.
Quando a Centivax se deparou com um artigo jornalístico sobre Friede, que havia documentado o seu projeto no seu canal no YouTube, entrou em contacto com o homem, que bastante agradado com a ideia de ser cobaia, respondeu na altura estar "há muito tempo à espera" de um convite como esse.
Para desenvolver o antídoto, a equipa selecionou 19 das espécies mais letais de categoria 1 e 2 da Organização Mundial da Saúde, incluindo cobras-corais, mambas, najas, taipans e kraits. Depois de isolarem anticorpos do sangue de Friede, os cientistas testaram-nos em ratos envenenados por cada espécie de serpente. A experiência permitiu identificar dois anticorpos que, quando combinados com um antídoto sintético, forneceram proteção completa contra 13 espécies e proteção parcial contra as demais.
“Quando chegámos a três componentes, tínhamos uma amplitude dramaticamente inigualável de proteção total para 13 das 19 espécies e, então, proteção parcial para as restantes que analisámos”, disse Jacob Glanville. Segundo o especialista, o meticuloso esquema de dosagem de Friede, que envolvia exposição cíclica a diferentes venenos, implicava que quaisquer anticorpos que oferecessem proteção mais ampla eram estimulados com mais frequência e amplificados pelo seu sistema imunológico. "Se eu, como imunologista, tivesse passado muito tempo pensando nisso, acho que não teria encontrado uma solução melhor", admitiu.