Boliviano detido com folha de coca esteve dois meses preso sem justificação legal
Juízes libertaram universitário, sem antecedentes criminais, detido com 1,2 quilos de planta tradicional boliviana, que estava em prisão preventiva. Crime menor, refere acórdão do Tribunal da Relação do Porto, não sustentava decisão de juiz de turno de Matosinhos
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Um estudante universitário de 19 anos, sem antecedentes criminais, natural da Bolívia mas a viver em Espanha com os pais, foi libertado esta semana, após dois meses numa cela da cadeia de Custóias, Matosinhos. Fernando Lazo tinha sido detido na posse de 1,2 quilos de folhas de coca, no regresso de uma viagem ao país natal, por ser suspeito de tráfico internacional de droga. Porém, para o Tribunal da Relação do Porto (TRP) e para o procurador-geral adjunto José da Silva Vicente nenhum dos indícios imputados ao jovem justificava a aplicação da prisão preventiva.
O caso foi notícia no JN em 30 de julho. Nessa ocasião, a família denunciou aquilo que apelidou de "injustiça" e descreveu o que tinha sucedido. Fernando Lazo tinha ido, pela primeira vez em 11 anos, gozar um curto período de férias à Bolívia, na companhia do pai e do irmão menor. No final desse mês, regressou a casa num voo que fez escala em Madrid, Espanha, e terminou no Porto, de onde deveria partir, com o irmão, em direção a Vigo, no carro da mãe.
Contudo, no Aeroporto Francisco Sá Carneiro, as autoridades encontraram pouco mais de um quilo de folha de coca, em três sacos plásticos, guardados por cima da roupa existente na mala de Fernando e o jovem já não pôde continuar a viagem.
Apesar de alegar que a folha de coca, pela qual tinha pago apenas seis euros, era simplesmente para mascar e para rituais religiosos que ele e a família mantêm vivos o universitário acabou detido.
Perigo de fuga e de continuação da atividade criminosa
Em comunicado, a Polícia Judiciária anunciou, à data, que Fernando Lazo estava indiciado pelo "crime de tráfico internacional de estupefacientes, por via aérea" e que tinha ficado em prisão preventiva, no final do interrogatório conduzido por um juiz de turno do Tribunal de Matosinhos. O magistrado justificou a aplicação da mais dura das medidas de coação com a "elevada [possibilidade de] perigo de fuga e de continuação da atividade criminosa".
"É altamente provável que o arguido venha a ser condenado em pena de prisão efetiva, atenta a moldura penal e não obstante a sua juventude, pelo que a medida de prisão preventiva se revela adequada e proporcional às exigências cautelares do caso em apreço", alegou, ainda, o juiz.
"O arguido conhecia as características do produto estupefaciente que detinha e que destinava à sua comercialização. Agiu, portanto, de forma livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que detinha e transportava as aludidas folhas de coca e que a sua detenção e transporte não lhes era permitido, bem sabendo que a sua conduta é proibida e punível por lei penal", acrescentou no despacho final.
Uma tonelada de folha para ter um quilo de cocaína
A família do jovem, através do advogado português Paulo Pimenta, recorreu da decisão para o TRP, referindo que o uso de folha de coca em infusões e para mascarar é "uma tradição milenar" na Bolívia e que é habitual os emigrantes levarem esta planta, para uso familiar e caseiro, para os países de destino. No recurso apresentado é dito, igualmente, que Fernando nunca seria detido em Espanha, país que reconhece este hábito, pela folha de coca que transportava.
As justificações apresentadas pela defesa foram totalmente subscritas, e elogiadas, pelo procurador-geral adjunto que, no âmbito do recurso, defendeu a substituição da prisão preventiva "pelas medidas de coação de prestação de caução e proibição de se ausentar de Espanha, salvo para vir a julgamento a Portugal".
"Face à quantidade das substâncias estupefacientes detidas pelo arguido recorrente, os factos em apreciação não poderão, creio, integrar a previsão legal do crime matricial de tráfico previsto, sancionado e punido no artigo 21.º do Decreto- Lei n.º 15/93, mas, quando muito, apenas o crime de tráfico de menor gravidade previsto, sancionado e punido no artigo 25.º do mesmo diploma legal, que, como é sabido, não admite a medida de coação da prisão preventiva", sustentou José da Silva Vicente.
Este frisou, igualmente, que "uma tonelada de folhas de coca, depois de devidamente manipulada e convertida para fins ilícitos, produz tão somente um quilo de cocaína". "Fazendo as contas e equivalências com o caso concreto, o recorrente seria então detentor de uma quantidade diminuta de cocaína, cuja destinação ainda está muito nebulosa e necessita de melhores esclarecimentos", assumiu.
Tribunal não sabe que crime imputar ao suspeito
Já num acórdão desta semana a que o JN teve acesso, o TRP destacou que a informação pericial sobre a folha de coca apreendida "é perfunctória e superficial", não concluindo, tão pouco, que "das referidas folhas se possa extrair cocaína diretamente ou por transformações químicas". " Destas limitações e lacunas resulta que não é possível ainda saber com segurança qual o crime a imputar ao arguido, se um tráfico do artigo 21º, se um tráfico do artigo 25º, se um transporte de matéria-prima destinada à preparação de produtos estupefaciente, ou se um transporte (importação) de substâncias proibidas para consumo próprio", destacaram os três juízes que assinaram o acórdão e decidiram libertar o jovem boliviano, ao fim de mais de dois meses de prisão preventiva.
Papa Francisco bebeu chá de folha de coca
O Papa Francisco prometeu e cumpriu. Quando, em 2015, visitou a Bolívia, o Sumo Pontífice bebeu chá feito com folhas de coca antes de o avião em que seguia ter aterrado na capital La Paz. O aeroporto internacional desta cidade situa-se a uma altitude muito elevada e o chá com folhas de coca é usado pelos viajantes e pelos habitantes para evitarem algum mal-estar que se possa sentir devido à altitude. À saída do avião e enquanto estava a ler o primeiro discurso, contou então a agência Reuters, o Papa Francisco aparentava estar bem de saúde. O ministro da Cultura boliviano, Marko Machicao, anunciou, ainda antes da visita, que o Santo Padre iria ainda mastigar folhas de coca de forma tradicional.