A APAV recebeu 500 pedidos de ajuda só no ano passado. As vítimas demoram a perceber que os comportamentos de sedução podem escalar.
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Desde 2015, ano em que o stalking (perseguição) foi criminalizado em Portugal, as denúncias têm vindo sempre a aumentar. Em 2019, a Associação de Apoio à Vítima (APAV) recebeu quase 500 pedidos de ajuda. Dados da Ordem dos Advogados referem que, entre agosto de 2015 e julho de 2017, foram investigados mais de 900 casos. Hoje assinala-se o Dia Nacional de Sensibilização para o Fenómeno do Stalking.
Apesar de o crime estar muito ligado à violência doméstica, há três grupos com maior risco de serem vítimas de perseguição: os profissionais da área da saúde mental (psiquiatras e psicólogos), geralmente por utentes com perturbações psiquiátricas; profissionais da área da justiça, por arguidos que atuam por retaliação; e jovens - há muitas relações juvenis em que o stalking é reportado.
"A perseguição sempre existiu, muito ligada à violência doméstica depois de a vítima terminar a relação. O crime não aumentou, mas hoje há mais capacidade para o denunciar", diz Daniel Cotrim, da APAV. As denúncias aumentam de ano para ano. Em 2017, a APAV recebeu 422 queixas; em 2018, foram 470 e, no ano passado, 580. O mais difícil é que as vítimas reconheçam a perseguição como crime. "Há muitas pessoas que se separam e começam a ser perseguidas. Recebem flores no emprego, bilhetes, o que é entendido como querer reatar a relação, não como violência", explica.
Em 2011, ano do primeiro estudo sobre o fenómeno no país, o stalking - que hoje já está no dicionário - era quase desconhecido e 19% da população relatava já ter sido vítima dele. Marlene Matos, coordenadora do Grupo de Investigação sobre Stalking em Portugal, da Universidade do Minho, diz que o interesse dos investigadores começou "pela elevada prevalência de perseguição por ex-parceiros abusivos". Mas o fenómeno não é exclusivo da violência doméstica. Aliás, o stalking ficou conhecido lá fora com casos de figuras públicas. As redes sociais, acredita a investigadora, vieram facilitar, ao "permitir a omnipresença e o acesso à vítima".
Vigilância e fantasia
Portugal só criminalizou a perseguição em 2015, após a ratificação da Convenção de Istambul. O Código Penal prevê uma pena de multa ou prisão até três anos. Desde então, "há mais consciencialização para o crime", embora seja muito difícil reconhecê-lo. "As vítimas demoram tempo. Se alguém tenta sucessivamente entrar em contacto, com comentários lisonjeadores, olha-se para isto como inofensivo e não se percebe que pode escalar", explica Marlene Matos, que diz que "o stalker começa a vigiar a pessoa, a ver com quem ela está". Segundo o psicólogo Daniel Cotrim, "o perseguidor fantasia com a paixão e pode virar a vida das vítimas do avesso, algumas têm que mudar de casa".
Cinco anos após a lei, não há números sobre as condenações. Sabe-se que, em 2018, havia seis perseguidores sob vigilância eletrónica. "Serão poucas, é difícil reunir prova. Mensagens, vídeos, fotografias, testemunhos de amigos, a vítima não vê isso como prova. E não há muitos advogados e psicólogos especializados". Marlene Matos alerta que a lei prevê o tratamento dos perseguidores, "mas não são conhecidos programas".
Lei
Afastamento pode ser decretado antes da sentença
No ano passado, todos os partidos avançaram com propostas de alteração da lei que introduziu, em 2015, no Código Penal o crime de perseguição. A lei não previa que as medidas de afastamento para o agressor pudessem ser aplicadas antes de o julgamento chegar ao fim, protegendo a vítima. Os partidos quiseram ver isso alterado e o texto final foi aprovado por unanimidade.
Casos
Stalker condenado
O homem que perseguia e assediava há cinco anos a radialista Joana Cruz e o namorado foi condenado a cinco anos de prisão. O stalker enviava fotos do casal, centenas de e-mails e mensagens com ameaças. Tinha antecedentes criminais.
Morta por perseguidor
Em 2019, Bárbara foi morta a tiro por um colega de trabalho, no Tagus Park, em Oeiras. Foi o fim trágico de uma paixão obsessiva. O stalker queria uma relação amorosa com Bárbara, tentou separá-la do marido. Não era correspondido e delineou um plano para a matar.
Cantor assediado
António Manuel Ribeiro, vocalista dos UHF, foi perseguido por uma fã, que chegou a ameaçá-lo de morte. Ia para a porta de sua casa, sabia tudo sobre a sua vida e mandou-lhe centenas de mensagens.