Bombeira residente em Loures foi das primeiras vítimas a apresentar queixa por "stalking", após receber centenas de mensagens. Arguido foi condenado a pena suspensa.
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É um assédio quase doentio, com as vítimas a serem constantemente sujeitas a perseguições, intimidações ou violações da vida privada. O chamado "stalking", que, desde 2015, é punido em Portugal através do crime de perseguição, está cada vez mais presente na sociedade. Mas a justiça está atenta ao fenómeno e, apesar de ser um crime punido com pena de prisão até três anos, ou apenas com multa, os reclusos que estão a cumprir pena por este ilícito não param de aumentar, tal como o número de investigações abertas pelo Ministério Público.
Maria (nome fictício), uma jovem bombeira a residir no concelho de Loures, foi uma das primeiras mulheres a apresentar queixa por perseguição contra um homem que, em apenas mês e meio, no verão de 2016, lhe enviou centenas de mensagens de texto e voz e fez ou tentou fazer dezenas de telefonemas. O indivíduo tinha desenvolvido uma "obsessão" pela bombeira apenas porque esta lhe pediu para parar de contactar uma amiga, que não era solteira. No início, as mensagens eram injuriosas, mas também com algum cariz sexual. No fim, já tinha referências à morte. O homem, que chegou a mandar 27 mensagens em apenas duas horas, foi condenado a 15 meses de prisão, com pena suspensa.
Inquéritos quase a dobrar
"Embora estes comportamentos possam ser aparentemente corriqueiros se não forem percebidos no contexto do stalking, as condutas que integram o seu tipo objetivo podem ser bastante intimidatórias, pela persistência e intensidade com que são praticadas, causando um enorme desconforto na vítima e atentando claramente à reserva da vida privada", escreveram os desembargadores do Tribunal da Relação de Lisboa, que confirmaram a pena suspensa decretada pelo Tribunal de Loures.
Tal como a maioria dos arguidos condenados por perseguição, este não foi parar à cadeia, mas a justiça está cada vez mais firme perante este tipo de comportamento.
Em 2016, precisamente no primeiro ano em que o crime foi tipificado, o Ministério Público abriu 482 inquéritos, para instaurar 658 no ano seguinte e 682 em 2018. Em 2019, foram 894, e em 2020, apesar de ser já um ano afetado pela pandemia, 907. No ano seguinte, foram 1011, e 924 em 2022. Ou seja, desde a criação do crime, o número anual de casos quase duplicou.
O número de condenações e de reclusos a cumprir pena nos estabelecimentos prisionais acompanha o crescimento do fenómeno, apesar de o crime ser punido com uma pena até três anos, que pode beneficiar de uma suspensão na sua execução.
De acordo com os dados fornecidos ao JN pela Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais, em 2017 não havia nenhum recluso nas cadeias por este crime. Mas, a partir do ano seguinte (já com dois preventivos e um condenado), não parou de aumentar. Dois condenados em 2019, oito em 2020, dez no ano seguinte e, a 31 de dezembro de 2022, havia quatro detidos em prisão preventiva e 13 em reclusão.
Segundo o seu último relatório, a Associação Portuguesa de Apoio à Vítima atendeu, em 2022, 261 vítimas de perseguição. Em 2021, registou 239 atendimentos.
Vigilância
Mais proteção desde 2019
A criação do crime de perseguição surgiu em Portugal em 2015, após a Convenção de Istambul, que visava melhor prevenção e combate à violência contra as mulheres e contra a violência doméstica. Aquando da tipificação nacional do crime, a lei não permitia que as medidas de afastamento do perseguidor em relação à vítima fossem aplicadas antes do trânsito em julgado da sentença. Mas esta circunstância mudou em agosto de 2019, permitindo, desde essa alteração, a aplicação de medidas de coação aos arguidos. A proibição de contactar, por qualquer meio, a vítima ou de adquirir armas, bem como a obrigatoriedade de se sujeitar a um tratamento de dependência que possa ter favorecido a prática do crime fazem parte do leque de ferramentas à disposição da justiça. Os perseguidores também podem ser obrigados a usar uma pulseira eletrónica de vigilância, com as vítimas a beneficiarem de um "botão de pânico". Segundo os dados da Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais (DGRSP), em novembro de 2021, havia 22 arguidos por crime de perseguição vigiados à distância, mais 37,5% do que um ano antes.
"Qualquer pessoa pode ser vítima deste crime"
O "stalking" atinge essencialmente jovens mulheres que são assediadas, geralmente por antigos parceiros. Mas os agressores também podem ser amigos, colegas de trabalho, pessoas com relações profissionais ou mesmo desconhecidos. O procurador da República Miguel Ângelo Carmo, do Gabinete da Família, da Criança, do Jovem, do Idoso e contra a Violência Doméstica da Procuradoria-Geral da República, fez ao JN um retrato do fenómeno.
Para o magistrado, a tipificação do crime veio melhorar a penalização deste tipo de comportamento. "Constituía uma lacuna de previsão legal com a consequente desproteção das vítimas face a modalidades de atuação que podiam não possuir enquadramento legal tipificado na lei penal", explicou, acrescentando que as vítimas vieram assim beneficiar de uma proteção mais eficaz.
"A proteção das vítimas surge reforçada justamente pela possibilidade de se fazer uso de instrumentos legais que permitem uma eficaz tutela dos direitos das vítimas, por exemplo, através do recurso a medidas especiais de proteção", referiu
As declarações para memória futura, as medidas para evitar o contacto visual entre as vítimas e o arguido, nomeadamente durante a prestação de depoimento, através do recurso a meios tecnológicos adequados, são algumas das disposições avançadas pelo magistrado, que sublinha a possibilidade de imposição de medidas de coação aos agressores como outra ferramenta de proteção.
Crimes associados
O procurador defende que "qualquer pessoa pode ser vítima deste crime", mas afirma que vitimiza mais as jovens mulheres. Trata-se, explica, de uma "forma de violência baseada no género", porquanto as mulheres representam "o grupo de vítimas que se evidencia com um risco acrescido". Entre estas e os agressores é comum existirem relações de proximidade, ao nível pessoal ou laboral, embora não sejam raros os casos em que a vítima não conhece o perseguidor.
Geralmente, verificam-se outros crimes associados ao "stalking". "Diria que a violência doméstica pode perfeitamente incluir a perseguição na parte que respeita à verificação de maus-tratos psíquicos e ainda na perspetiva da tutela da liberdade pessoal da vítima, e inclusive a sua liberdade e autodeterminação sexual, convocando ainda os próprios crimes de natureza sexual. Além destes, os crimes contra a liberdade pessoal, como sejam o sequestro e ainda as ameaças e a coação, sem descurar a própria tutela dos crimes contra a integridade física", frisou o magistrado.