Desembargador recebia ajuda, na redação das sentenças, para se libertar para outras atividades pagas. Colaboração pode valer acusação criminal.
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O desembargador Rui Rangel recorreu a Fátima Galante, sua esposa e colega no Tribunal da Relação de Lisboa, para elaborar 268 acórdãos, entre 2008 e 2018. A colaboração da mulher, que terá violado deveres inerentes às funções de magistrado e poderá vir a constar da futura acusação criminal da Operação Lex, era parte de uma "parceria mais lata" destinada a "libertar Rui Rangel para o desenvolvimento de outras atividades", escreveu o Supremo Tribunal de Justiça (STJ) no acórdão que confirmou a demissão do juiz.
O procedimento disciplinar contra Rangel fez uso de prova que foi recolhida na Operação Lex, sob a direção da procuradora Maria José Morgado, e dedicou especial atenção à inusitada participação de Fátima Galante na elaboração de acórdãos de processos distribuídos ao marido, em fase de recurso.
No acórdão da semana passada que chumbou o recurso de Rangel sobre a sua demissão, o Supremo começa por explicar que Fátima Galante procedia à "correção" e "redação final" dos acórdãos do marido. Quando estavam concluídos, ela remetia-os para Rangel, enviava-os para o economato da Relação de Lisboa ou deixava-os, impressos, em lugares combinados, acrescenta o STJ, identificando cada um dos 268 processos.
"Quanto pagas?"
Rangel e Galante são casados, mas não partilharão casa há anos. Sem abordar esta questão, o STJ reproduz inúmeros emails trocados entre ambos para tratar de aspetos práticos da colaboração, por vezes com algum humor. "A papinha toda, hein?!", escreveu Fátima Falante, em email de 2016 referente a mais um pedido de Rangel. Noutro caso, não se percebe se com ou sem ironia, pergunta-lhe: "Quanto pagas?".
Alguns dos emails indicam que Galante tanto refletia e assumia posição própria sobre o sentido dos acórdãos, como recebia instruções de Rangel, para condenar ou não. "É para dar razão ao arguido no que concerne ao pedido civil", ordenou ele num email.
Para o Conselho Superior da Magistratura, que condenou Rangel à demissão e Galante a aposentação compulsiva, a colaboração entre estes violou o princípio de que "o recurso é estudado e decidido pelo juiz a que foi distribuído, com a colaboração do juiz-adjunto e do presidente da secção". Além disso, implicou que a juíza soubesse informação de processos-crime sujeita a sigilo profissional e até a segredo de justiça, acrescentou.
De resto, a censura daquele órgão disciplinar é agravada por a colaboração ser tida como parte de uma estratégia para atividades extra pagas de Rui Rangel que terão violado o dever de exclusividade dos juízes e, nalguns casos, indiciam crimes.
TRUQUE COM MULTAS
Três infrações
Um arguido da Operação Lex é suspeito de pedir a um advogado espanhol para lhe fornecer cópias de documentos de identificação de cidadãos extracomunitários, para as usar em processos por infrações ao Código da Estrada cometidas por Rui Rangel em Portugal.
Marrocos e Equador
O espanhol forneceu documentos de um marroquino. Mais tarde, recebeu outro pedido - "Preciso de um marroquino novo" -, mas enviou dados de um equatoriano. Rangel indicou à polícia que o marroquino e o equatoriano eram quem conduzia o seu carro em três ocasiões em que foi apanhado em infração, nomeadamente por excesso de velocidade.