Tribunais aplicaram pena suspensa a quase dois terços dos condenados entre 2015 e 2018. Abusos podem não passar de apalpões, explicam juízes, convictos de que os casos mais graves são punidos com cadeia.
Corpo do artigo
12957707
A seguir ao jantar, enquanto a companheira lavava a louça, um empresário da Figueira da Foz ficava sentado no sofá da sala com a enteada, que ainda não tinha dez anos, e apalpava-a.
Em julgamento, o Tribunal de Coimbra concluiu que a situação foi "grave", pois prolongou-se por três anos e causou à vítima "transtornos emocionais e psicológicos". Em consequência, condenou o arguido a uma pena de prisão de três anos e meio, mas suspensa por cinco. Uma decisão, proferida este mês, que não destoa do padrão das condenações por abuso sexual de crianças e de menores dependentes. De 2015 a 2018, os tribunais de primeira instância aplicaram prisão efetiva apenas a um terço (381) dos 1162 condenados.
As estatísticas de 2019 ainda não estão disponíveis, mas os dados dos quatro anos anteriores, fornecidos pelo Ministério da Justiça, revelam uma tendência estável dos tribunais para concederem liberdade a uma grande maioria dos autores de crimes de abuso sexual de crianças (menores de 14 anos) e de menores (14 a 18 anos), mediante a suspensão das penas de prisão. O que também quer dizer que, pelo menos em dois terços dos casos daqueles quatro anos, os juízes fixaram as penas muito abaixo dos limites máximos previstos na lei (dez anos nos abusos de crianças, oito nos de menores), já que só podem ser suspensas as não superiores a cinco anos.
Mas o pelotão de 730 condenados (62,8% do total) em penas suspensas não teve todo o mesmo tratamento: 88 gozaram de suspensões "simples", sem nenhuma obrigação específica; 82 viram o tribunal prescrever-lhes alguns "deveres" ou "regras de conduta", como a não aproximação de recintos desportivos ou escolares frequentados por menores; e os outros 560 ficaram sujeitos a um "regime de prova", a receita mais exigente, também prescrita para o empresário da Figueira da Foz, por poder implicar consultas de psicologia e alguma fiscalização.
De resto, houve ainda 41 abusadores (3,5%) que evitaram a prisão pagando multa ou fazendo trabalho comunitário, dez (0,8%) que foram internados em instituições de saúde e, finalmente, 381 (32,7%) que foram mesmo para trás das grades.
Abusos muito variáveis
É surpreendente que a maioria dos abusadores não seja presa? "Só poderia ficar surpreendido se conhecesse a tipologia de factos dos processos", responde o presidente da Associação Sindical dos Juízes Portugueses, Manuel Soares, sublinhando que "os crimes de abusos podem ir do mero apalpão numa perna até à cópula".
O Código Penal prevê molduras penais amplas, entre um e dez anos, para quem praticar "ato sexual de relevo" que vitime crianças ou menores, considerando a situação mais grave quando o ato consistir em "cópula, coito anal, coito oral ou introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objetos".
"O ato sexual de relevo é um caldeirão grande onde cabe muita coisa - discute-se na jurisprudência, por exemplo, se o beijo na boca é um ato sexual de relevo - e as reações penais também são muito diferentes", ilustra o juiz Fernando Andrade, arriscando: "Se a estatística incidisse sobre abusos de menores de 14 anos com cópula, de certeza de que a prisão efetiva teria uma preponderância brutal". Manuel Soares corrobora: "Posso intuir que, quando já não estamos perante atos sexuais de relevo mínimo, mas mais importantes, há prisão efetiva".
Mas os juízes evocam outros fatores a ponderar, além da natureza do ato sexual e da idade da vítima, na determinação do tipo e da medida da pena. No processo de Coimbra, por exemplo, o coletivo de juízes presidido por Rui Pacheco tinha outros pesos para pôr nos pratos da balança. Por um lado, o agressor sexual não tinha antecedentes criminais, invocou uma "vida organizada" e o "apoio" do filho e de uma nova companheira. Por outro, prolongara os abusos entre 2015 e 2018, causara à vítima comprovados "transtornos emocionais e psicológicos" e não demonstrou "arrependimento" perante o tribunal. Este, nas contas finais, reduziu o pedido de indemnização da vítima de 60 mil para 4500 euros e decidiu dar "uma oportunidade" ao agressor sexual, suspendendo-lhe a pena.
Consentimento distingue abusos de violação
Os abusos sexuais de crianças e de menores dependentes ou em situação particularmente vulnerável são os dois tipos de crimes sexuais mais julgados. O quadro mais comum é aquele em que há uma relação de proximidade, nomeadamente familiar, entre a vítima e o agressor. Ao contrário do crime de violação, por exemplo, os de abuso integram a secção do Código Penal dedicada aos crimes contra autodeterminação sexual. E o que os distingue do crime de violação e de outros crimes sexuais é o consentimento. Este pode explicar-se por as crianças não terem consciência dos atos praticados, ou por os abusadores se aproveitarem da posição de autoridade ou de influência sobre as vítimas. De resto, o consentimento pode ser só aparente, por exemplo, quando a vítima não repudia o ato sexual porque é ameaçada da divulgação de fotografias íntimas na net.