Manuel Pinho: "Recebi mais vezes qualquer industrial de terceira categoria do que o Dr. Salgado"
O ex-ministro Manuel Pinho insistiu esta terça-feira, em tribunal, que nunca existiu uma relação de proximidade entre si e o ex-banqueiro Ricardo Salgado, incluindo enquanto foi titular da pasta de Economia, entre 2005 e 2009.
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“Recebi mais vezes qualquer industrial de sapatos de terceira categoria do que o Dr. Salgado enquanto estive no Governo”, desabafou, no primeiro dia do julgamento de ambos por corrupção, em Lisboa, Manuel Pinho.
Num depoimento algo confuso e recheado de apartes – incluindo uma “declaração de amor” à mulher, igualmente arguida no processo – o antigo governante, de 68 anos, deixou até transparecer alguma revolta por o ex-banqueiro não ter permitido que se reformasse aos 55 anos, com 62 mil euros mensais pagos pelo fundo de pensões do banco.
A nega, acompanhada de uma pedido de adiamento da aposentação “para melhor facilitar os interesses do banco”, terá sido dada em 2010, já depois Manuel Pinho ter saído do Governo. “Fiquei um bocado enxofrado”, afirmou o ex-ministro.
Em causa terão estado os últimos pagamentos de um total de cinco milhões de euros que, segundo o Ministério Público, Ricardo Salgado terá feito chegar, através de offshores, à esfera de Manuel Pinho para que este beneficiasse o BES/GES na sua ação governamental. O ex-ministro nega e associa o dinheiro recebido de 2005 a 2013 a um “acordo” celebrado em 2004 pelo seu afastamento da coordenação da área de mercado de capitais do banco.
Pagamentos offshore
“Em 2004, os acionistas entenderam: ‘não obstante os resultados, é posto de lado’. É uma situação muito estranha. Eu fiquei muito ferido e demorei muito tempo a aceitar isso”, recordou, esta terça-feira, Manuel Pinho.
No total, iria receber, caso não assumisse qualquer cargo público, cerca de 19 milhões de euros, mais 14 do que o que, para a acusação, terá ganho com o “pacto corruptivo” com Ricardo Salgado. O montante incluía a atribuição de uma “renda” até “ao dia em que exercesse o direito à reforma” e foi pago com recurso a offshores, algo que seria uma prática comum na instituição financeira e no grupo.
“O BES e o GES tinham o mau hábito de pagar complementos de salários e prémios no estrangeiro. É fácil dizer [agora] que não devia ter aceite. Como consequência não teria trabalhado na altura no segundo maior banco [português cotado em bolsa]”, sublinhou.
Em 2005, acabaria por se demitir para ir para o Governo, mesmo perdendo, aparentemente, dinheiro. Para tal, terá ajudado o facto de ter então a perspetiva de se reformar mais cedo. “Não há melhor fortuna. Tudo que é dinheiro no banco vai depressa, e uma reforma é para toda a vida. Na altura, tinha 50 anos”, justificou. E insistiu que nunca atuou para beneficiar indevidamente o BES/GES.
"Favores patéticos"
“Os favores que me acusam de ter feito ao BES são patéticos”, reiterou Manuel Pinho. Entre estes, estão a revogação de uma fusão entre a Brisa (propriedade de um dos maiores clientes do banco à data) e a Estradas do Atlântico, uma “autorização relâmpago” de um pedido administrativo da Águas do Vimeiro, empresa da esfera do GES, e intervenções à margem da lei em processos de potencial interesse nacional (PIN) promovidos por este último grupo, como o da herdade da Comporta (Alcácer do Sal).
O ex-ministro nega todas as suspeitas e, esta terça-feira, chegou mesmo a considerar que "foi um disparate ter-se vendido todas as empresas aos estrangeiros" para defender a decisão que tomou, em 2006, de reverter o chumbo pela Autoridade da Concorrência do aumento da participação da Brisa na Auto-Estradas do Atlântico.
A anulação, garantiu, visou apenas "beneficiar a economia portuguesa", uma vez que, no entender do então ministro da Economia, a fusão entre as duas concessionárias das autoestradas Porto-Lisboa não poria, por um lado, em causa os interesses dos consumidores e, por outro, impediria a Brisa de aumentar a sua "massa crítica", tornando inevitável a venda da empresa, "mais cedo ou mais tarde", a estrangeiros.
Em 2020, a Brisa, totalmente privatizada em 2001, acabaria, ainda assim, por ser mesmo vendida a um fundo estrangeiro. "Bestial, bestial", ironizou Manuel Pinho. "É um disparate inacreditável ter-se vendido bancos, empresas, tudo, tudo, tudo, a estrangeiros", atirou.
No caso da Águas do Vimeiro, o antigo ministro defendeu, por sua vez, que a suposta "autorização relâmpago" era só administrativa e mesmo assim durou oito meses. Já quanto aos PIN com fins turísticos, como o da herdade da Comporta, Manuel Pinho garantiu que estes projetos "não requerem uma única aprovação do Ministério da Economia" e, por isso, nunca poderia intervir no processo, "mesmo que quisesse".
O depoimento continua na próxima sexta-feira, 13 de outubro.
Pormenores
Salgado ausente
Ricardo Salgado, de 79 anos e a aguardar o resultado de uma perícia para apurar se sofre mesmo de Alzheimer, esteve, com autorização do tribunal, ausente. Em 2019, o ex-líder do BES garantiu que nunca corrompeu ninguém.
Vários crimes
Os arguidos respondem, em geral, por corrupção, fraude fiscal e branqueamento. A mulher de Manuel Pinho, de 63 anos, também nega todas as acusações. Vai depor no a 23 de outubro.
Sócrates testemunha
José Sócrates, cujo Governo foi integrado por Manuel Pinho, é um dos três ex-primeiros-ministros que irão testemunhar no julgamento com sessões marcadas até 2024. Os restantes são Durão Barroso e Pedro Passos Coelho.