Comandos usaram aviões oficiais e missões da ONU para contrabandar mercadoria entre África e Europa.
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Aproveitaram missões de paz na República Centro-Africana (RCA), coordenadas pela Organização das Nações Unidas, para montar um esquema internacional de tráfico de diamantes, ouro e droga. Através de aviões das Forças Armadas traziam, da RCA para Portugal, mercadoria ilícita que seguia para a Bélgica em carros particulares. Depois, branqueavam o dinheiro dos diamantes de sangue - pedras preciosas extraídas em zona de guerra e posteriormente traficadas - através de uma miríade de contas bancárias portuguesas, tituladas por testas de ferro, que serviam para comprar moeda digital, como bitcoins.
A Polícia Judiciária (PJ), que desmantelou na segunda-feira o esquema, numa megaoperação batizada "Miríade", deteve dez pessoas, duas delas em flagrante delito por posse de armas. Cerca de 40 pessoas foram constituídas arguidas por terem ajudado o núcleo duro a lavar os milhões do crime.
Tubos de charutos
De acordo com informações recolhidas pelo JN, os mentores do esquema, indiciados por associação criminosa, contrabando de diamantes e ouro, tráfico de droga, contrafação e passagem de moeda falsa, acessos ilegítimos e burlas informáticas, são todos comandos ou ex-comandos. Dois deles saíram dos Comandos para ingressarem na GNR e na PSP. O candidato a guarda ainda estava em formação e o Polícia trabalhava em Lisboa. Os indivíduos comprariam diamantes na RCA, que colocavam em tubo de acondicionamento de charutos. Os tubos eram depois colocados nas malas onde os militares guardavam as roupas e objetos pessoais. As malas eram colocadas nos aviões das Forças Armadas ou fretados pela Tropa para trazer os militares de volta a Portugal.
Chegavam ao Aeroporto de Figo Maduro, infraestrutura militar onde não havia um sistema de controlo alfandegário eficiente. Depois de terem viajado no mesmo avião que as malas, bastava aos comandos traficantes recolher as mesmas.
O JN sabe que, há alguns meses, foram apreendidos diamantes que tinham acabado de chegar a Portugal. E essa apreensão é considerada uma prova importante para demonstrar o tráfico.
Ainda segundo foi possível apurar, os diamantes eram depois colocados em viaturas civis para seguirem para a Bélgica. Seriam os próprios elementos do núcleo duro ou alguns cúmplices a fazerem os transportes da mercadoria até Antuérpia, um dos centros nevrálgicos da indústria do diamante europeu.
Branqueamento
Em circuito inverso seguia o dinheiro. Depois de estar em Portugal, os líderes do esquema solicitavam a cumplicidade de terceiro para o branqueamento.
Serão cerca de 40 os indivíduos constituídos arguidos na segunda-feira, que aceitaram emprestar as contas bancárias para que fossem efetuados depósitos. Posteriormente, eram adquiridas moedas virtuais e, no total, a investigação suspeita terem sido movimentados cerca de 1,5 milhões de euros por essa via.
O inquérito nasceu há cerca de dois anos, depois de o Estado-Maior-General das Forças Armadas ter recebido uma denúncia, que encaminhou logo para o Ministério Público.
"Além da denúncia imediata, o EMGFA mandou reforçar os procedimentos de controlo e verificação à chegada dos militares da Força Nacional Destacada e respetivas cargas", explicaram na segunda-feira as Forças Armadas, em comunicado.
As buscas da PJ realizaram-se na base de Santa Margarida (concelho de Constância), na região de Lisboa, Funchal, Bragança, Porto de Mós, Entroncamento, Setúbal, Beja e Faro, contando com a participação de cerca de 320 inspetores e peritos.
Outros escândalos nas Forças Armadas
O furto de Tancos e a encenação (2017)
Foi o escândalo que levou à demissão e acusação de um ministro e também à decapitação da liderança da Polícia Judiciária Militar (PJM). Em junho de 2017, um paiol de Tancos foi assaltado e foi levado um conjunto importante de armamento. Quatro meses depois, após uma suposta chamada anónima, a PJM anunciou a recuperação das armas. Mas a Polícia Judiciária (PJ) revelaria que a recuperação fora encenada. A PJM teria prometido cobertura a um dos assaltantes em troca do armamento. Foram entretanto acusados, além do ex-ministro da Defesa Azeredo Lopes, o antigo diretor da PJM Luís Vieira e o ex-porta-voz desta instituição militar Vasco Brazão, bem como elementos da GNR de Loulé e indivíduos que participaram no furto. Nas alegações finais, o MP pediu a absolvição de Azeredo Lopes. A 12 de novembro, será lida a sentença.
Sobrefaturar alimentos nas messes (2016)
Foi no final de 2016 que rebentou o escândalo da Operação Zeus. Um major, dois capitães e três sargentos foram detidos na operação realizada pela Polícia Judiciária em conjunto com a Polícia Judiciária Militar. Os gestores das messes faturariam aos fornecedores mais do que aqueles alimentos tinham efetivamente custado. O valor da diferença seria depois repartido entre os empresários e os militares, incluindo um general, Raul Milhais de Carvalho, dois coronéis, Jorge Lima e Alcides Fernandes, e dois outros oficiais superiores da Direção de Abastecimento e Transportes da Força Aérea. No ano passado, o Tribunal de Sintra condenou a penas de prisão efetiva, entre três anos e seis anos, dez militares, incluindo um major-general e dois coronéis da Força Aérea.