"Salvei-a de se matar mas ela já tinha empurrado o filho para o fundo do poço"
Mãe de 52 anos admite ter matado filho autista de 17. Mulher foi salva por primo e terá tentado de novo o suicídio, já detida pela GNR.
Corpo do artigo
José Manuel Periquito vai no seu trator pelo caminho pedroso de pó, cruza os campos de oliveiras e o capim seco, estão 38 graus, o sol pica e ele vai muito aflito, vai apavorado e acelera. Minutos antes, pouco depois das duas da tarde, recebera um telefonema da prima Fátima Martinho, trabalhadora agrícola de 52 anos, que lhe pôs a cara num esgar de horror. Disse-lhe ela: "Já matei o meu filho e vou-me matar também!".
12393150
Ela começou por falar nos cartões multibanco, onde estavam e que tinham dinheiro para pagar os funerais. "Eu baralhei-me todo, mas que funerais?!, não percebia nada, pagar o quê?, ela chorava aos soluços e eu assustei-me", diz ele. E depois têm o diálogo terrífico: "Mas mataste o teu filho? "Matei. E agora vou-me matar a mim!"". E foi aí, "depois de eu lhe berrar, não!, fica quieta!, Fátima!, eu já vou!, eu já vou!", que ele se pôs a caminho.
Isto aconteceu na segunda-feira em Cabanelas, Mirandela: Fátima Martinho, divorciada, mãe de Eduardo, 17 anos, autista, matou o filho empurrando-o para o fundo de um poço de três metros e a seguir quis matar-se também no mesmo lugar - sem conseguir.
A mulher confessou o crime, foi interrogada no Tribunal de Mirandela, já está em prisão preventiva e aguarda julgamento por suspeitas de homicídio qualificado. Há indícios ainda de premeditação: Fátima saíra com o filho de manhã, fizeram ambos os três quilómetros a pé e ela levou merenda com bananas e água para o rapaz.
"Quando lá cheguei ao poço, que fica debaixo da sombra de uma cerejeira, é o poço do Manuel Henrique, nos Batuqueiros, julguei que já ia encontrar os dois mortos no buraco. Era o meu medo", continua José Manuel. "Mas não, a Fátima, que é minha prima, somos vizinhos, ela estava viva, sentada nos degraus com água pela cinta. O filho não se via, já estava no fundo. E ela estava muito aflita, chorava muito e dizia: "Vou ser presa, ó Zé, matei-o, eu matei-o".
José Manuel diz que lhe tornou a berrar, mas que só queria que ela saísse do poço. "Meti-me aos poucos, dei a mão, depois falei-lhe baixinho, ó Fátima, sai daí, anda, e lá a puxei. Salvei-a de se matar, mas já não salvei o rapaz. Ela já tinha empurrado o filho para o fundo do poço, o menino já era morto".
Filho agressivo na pandemia
Eduardo José Martinho, que frequentava há 11 anos a escola D. Afonso III, de Vinhais, turma de ensino especial, estava desde março em casa porque a escola fechou, por causa da pandemia. E se na escola nunca manifestara indícios de violência, conforme disse ao JN o diretor do agrupamento, o isolamento em casa e a falta de rotinas tê-lo-ão transformado, alegam vizinhos de porta e confirma José Manuel Periquito: "O miúdo andava agressivo, tinha piorado do autismo, parece que é autismo regressivo, já não falava, e ele era grande e era forte. E às vezes era mau. Eu sei que a Fátima às vezes se fechava no quarto para ele não lhe bater. Era assim. Ela já tinha tentado pô-lo nas instituições mas não havia vagas".
"Mas ela adorava o filho, adorava, vivia para ele, era, até acontecer isto, uma belíssima mãe. Era! Não há aqui ninguém que diga o contrário - diz José Manuel -, mas a vida dela foi uma frustração, coitada dela, viveu sempre na cruz".
Depois de retirar Fátima do poço aos soluços, José Manuel regressou com ela a casa no trator. "Eu acalmei-a, ela ligou à GNR, seriam cinco da tarde, ela confessou, eles vieram logo e foram logo lá ver".
Mas depois Fátima, já sob alçada da GNR, na sua casa alta de três andares, tentou matar-se pela segunda vez, disse ao JN fonte familiar. "Ela tentou chegar à varanda e atirar-se de cima, da sacada mais alta. Os guardas não deixaram. Se conseguia, aquilo é tão alto, tinha morrido, é certo que morria".
Escola diz que rapaz nunca agiu com violência
Rui Correia é diretor do Agrupamento de Escolas D. Afonso III de Vinhais há 13 anos, onde há 11 anos nasceu um projeto pioneiro a nível nacional para crianças autistas e onde estava Eduardo José. Ficou chocado com esta tragédia, mas estranha os seus contornos e em particular os relatos de que o rapaz tinha ficado agressivo nos últimos tempos.
"Não era nada problemático. Era uma criança muito doce, nunca nos deu qualquer problema ao longo dos 11 anos que aqui esteve, nunca protagonizou qualquer episódio de violência. Também dizem que ele tinha epilepsia, mas isso é muito recente e aqui nunca aconteceu nenhum episódio relacionado com isso", conta, ao JN.
"Ele tinha uma perturbação no espectro do autismo grave. Aquilo que se chamava antigamente o autismo regressivo. Começou por articular algumas palavras, mas com o tempo foi perdendo faculdades", explica.
O diretor do agrupamento estranha igualmente os contornos desta morte. "É muito estranho o que aconteceu, porque tínhamos conhecimento que a mãe só vivia para o Eduardo. Eles eram muito próximos", afirma.
"Tive conversas com pais e encarregados de educação de crianças ditas normais em que, com esta situação do covid, estavam mesmo passados em casa e acredito que tenha acontecido a mesma coisa com a mãe do Eduardo e possa ter chegado a um ponto de saturação", acrescenta Rui Correia, para quem estas famílias deviam ter outro tipo de apoio, além do contexto escolar, nos dias úteis das 9 até às 17.40 horas.
Pormenores
Pai muito ausente
Hermenegildo Ruivo, conhecido por Gil, canalizador, é o pai de Eduardo Martinho, o miúdo que a mãe confessou ter matado no poço. O filho nasceu de um caso extraconjugal, o pai perfilhou-o, mas nunca fez parte da vida dele - e nunca terá contribuído com pensão alimentar.
"Ela era boa mãe"
Angelina Lopes, 75 anos, tia de Fátima, diz que "ela não merece ser punida, ela era boa mãe, dava o pão e a vida por ele". O que se passou? "Não sabemos, a cabecinha descompensou-se, estava esgotadinha", diz o vizinho Manuel Joaquim. "Ele era o cordeiro dela, adorava-o", diz a vizinha Maria Helena.
Funeral é hoje
A autópsia foi realizada ontem no Instituto de Medicina Legal de Mirandela e o funeral de Eduardo deverá realizar-se hoje em Cabanelas.