Tragicomédia. Escândalo. Psicodrama. Desastre. Insultos. Greve. Humilhação. Vergonha. A imagem manchada. A chacota mundial. "Com eles, a união faz a farsa".
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Políticos a meter-se ao barulho, o galo de crista baixada, a França parece estar a viver dias negros, a julgar pelo que se lê e ouve. A selecção francesa fez fraquíssima figura na África do Sul e arrisca-se a deixar na sociedade que a sustenta um rasto bem mais grave do que o da simples eliminação. Porque aquilo eram os "Bleus". Os Bleus que, em 1998, foram "Blacks, Blancs, Beurs" (pretos, brancos e árabes) e uniram uma nação em torno da multiculturalidade.
Há esse risco de os franceses olharem para a selecção e dizerem: "Não, aquilo não é a França". E já houve quem a convertesse na imagem da sociedade dos gangues, da que não tem, ou quase, gauleses. Aquela que alguma França recusa. E prestou-se a isso a equipa de Raymond Domenech. "Divas" "milionárias" e "arrogantes" escolhidos pela Federação Francesa de Futebol, FFF agora traduzida para France Foot Fric (carcanhol), para representar a França jogaram aos mimos e aos insultos, fizeram greve contra o afastamento de um deles e vieram ontem recambiados das férias em África.
Golpe na França multiétnica
"A prestação medíocre associada à desordem cria os condimentos necessários para os franceses rejeitarem aquela 'França'", teme o sociólogo João Sedas Nunes. Porque "é o mundo inteiro que dá conta da vergonha". E poderá ressurgir - se já não está aí - o discurso racista pré-1998 "para compensar" o desaire. Um desaire tal que a ministra francesa do Desporto, Roselyne Bachelot, foi enviada de emergência para a África do Sul chamar os meninos à razão. Diz ela que "choraram" quando lhes disse que eram os putos de França que deixariam de ter heróis. "Foi a imagem da França que vocês mancharam".
A intervenção dos políticos nem espanta o politólogo Nuno Rogeiro, que não quer ver nos campeonatos de futebol uma espécie de guerra. "Tem a ver com o facto de ser um desporto de massas, um pouco como o espelho da sociedade". Ora aí está.
O que valerá ao Hexágono é que, apesar de repercutir a imagem que os franceses têm de si próprios, por lá o futebol não será o que é por cá. Ou melhor. É, mas não está sozinho na representação gaulesa pelo Mundo. Esta espalha-se pela cultura, pela economia, pelo poder internacional, analisa João Nuno Coelho.
Ainda assim, o "psicodrama grotesco" - como o intitula Jean-Marie Colombani, ex-director do diário Le Monde - que foi a prestação dos Bleus está a gerar mais nervos do que noutros países internacionalmente projectados ao nível da França. "A campeã do Mundo, a Itália, tem dificuldades; a Inglaterra não está melhor, apesar de contar com um treinador sem paralelo; a Alemanha já conhece a derrota. Estes acontecimentos deram lugar a protestos e polémicas, mas não necessariamente a um drama nacional de semelhante magnitude", escreveu Colombani no espanhol "El País". Talvez resultado da tal imagem da selecção, multicultural, de "uma sociedade em crise", diz, citando o filósofo Alain Finkielkraut. O mesmo que disse que, se a França dos gangues ganhasse, seria uma catástrofe. "É este tipo de distinção que há que evitar se não queremos somar ao fracasso desportivo um conflito de outra natureza, desta vez étnico e político", responde Colombani.
A França entregue à "democracia da ira"? O golpe da misericórdia na visão colorida Blacks Blancs Beurs? Acima de tudo o desalento. "Como é que querem que nos recordemos de vocês?" questiona, lapidarmente, Roselyne Bachelot.