<p>Se há dez anos alguém se virasse para Mothudi e lhe dissesse isto: "Mothudi, vou passar o fim-de-semana ao Soweto, arrendei lá uma casa. Onde me aconselhas a jantar?" Se há dez anos este vendedor fala-barato de artesanato africano na Ngakane Street ouvisse uma pergunta destas, provavelmente teria respondido: "És louco ou tens um desejo obscuro de morrer antes do tempo?" Mas isso era há dez anos.</p>
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Hoje, em 2010, ano que ficará para a história como o do primeiro mundial de futebol em África, o Soweto, coração vibrante do movimento que derrubou o poder segregacionista, bairro gigantesco nos arredores de Joanesburgo (quase apetece dizer Joanesburgo, cidade nos arredores do bairro do Soweto) enfrenta um novo desafio: libertar-se do anátema de um passado que lhe foi útil mas que já não basta.
A história ajuda a desmontar o raciocínio. Foi no Soweto (do Inglês SouthWest Township, qualquer coisa como "Cidadela a Sudoeste") que os negros oprimidos durante décadas por um regime que premiava a circunstância de se nascer branco iniciaram a revolta. Cansaram-se do recolher obrigatório (quem ficasse do outro lado depois da hora decretada não podia regressar a casa), da pobreza, da humilhação. Insurgiram-se. Morreram pela causa. Mas fizeram vingar a sua determinação. A casa onde viveu a família Mandela lá está, prova cimentada, santuário da luta anti-apartheid.
O Soweto já não é só uma favela monstruosa que alguns dizem acolher mais de quatro milhões de pessoas (só há previsões, dados os movimentos flutuantes de cidadãos ilegais de outros países), um tugúrio onde ia parar tudo o que era roubado na "city". O Soweto modernizou-se, abriu-se à comunidade não-negra (há quem garanta, porém, que ali não ivive nenhum branco), de alguma forma ocidentalizou-se.
Que o diga Maana, menino com nome de menina, enquanto esfrega cuidadosamente o Mercedes e o Porsche do "boss", negro corpulento que espraia a musculatura numa cadeira de plástico branca. Que o diga Eva Nako, matriarca de olhar franco, aflita por não ver, junto a Peterson Square, os efeitos no negócio da febre do mundial ( "Nako quer dizer tempo", entrecorta. "Por isso eu digo que nasci a tempo").
Que o diga Charles Zuku, 41 anos, orgulhosamente embriagado, orgulhosamente desdentado - ainda hoje desconhece o paradeiro do dente do meio - muitos "hey man", muitos "ya, ya", muita cerveja emborcada ao final da tarde. Ele e os amigos. Todos empregados, garante. Que o diga Puleng, negra de cabelo loiro, postiço, sereia rendida ao poder que o futebol exerce sobre o bairro onde mora há 37 anos. "Agora é seguro vir ao Soweto. Não tenham medo". Que o diga a menina Dikeledi, nove anitos, de gelado de laranja em riste, sozinha na rua, porque os pais sabem que não há monstros por perto. Que o digam Tale e Renang, curvilíneas representantes do bairro, enamoradas pelos turistas que querem ser fotogrados a seu lado.
Já se vêem casas de dois andares com piscina e carros novinhos na garagem, já se fazem barbecues nos jardins, há escolas de ballet e de judo, bons restaurantes e bares atraentes. Já se aprendeu a conviver com os turistas e a apreender a importância do seu dinheiro.
Mas não se pense que o velho Soweto se desvaneceu. Ele ainda assume uma forma brutal. O Soweto das favelas (ou dos "shacks", como eles lhe chamam), o Soweto dormitório, das pessoas amontoadas nos milhares de táxis colectivos que vão desaguando no bairro, vindos da cidade, dos bandidos sempre à espreita, aguardando um deslize, um vidro do carro aberto, uma carteira mal guardada.
O novo Soweto ainda é, em muitos aspectos, o velho Soweto. Mas o novo Soweto tem uma vantagem em relação ao antigo: agora, pode sonhar-se para lá dos muros do bairro. Durante o apartheid, os sonhos tinham algemas.