Quatro meses após chegar a Lisboa, Julia Monar, embaixadora da Alemanha em Portugal, diz-se impressionada com o papel de Portugal no seio da NATO, mas mostra-se melindrada com a ideia de que Berlim se mostrou reticente em ajudar a Ucrânia militarmente.
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Começou esta missão de uma forma atípica, num contexto de guerra na Europa. Como é que avalia a relação entre Portugal e Alemanha?
O momento da minha chegada ficou marcado por um momento trágico para toda a Europa, mas acho que esta guerra fez com que os Estados-membros da União Europeia ficassem mais próximos uns dos outros e que as reações, no seguimento desta situação, passassem por decisões quase unânimes. Existe uma concertação muito estreita e isto é importante para a relação da Alemanha e Portugal. Quando cheguei percebi que as posições políticas junto da União Europeia são muito parecidas entre os dois países, o que facilita muito o meu trabalho. A Alemanha e Portugal têm interesses em comum, por exemplo, no que diz respeito à criação de um mercado integrado para a energia.
As relações luso-alemãs tiveram início no século XIX. Quais os principais desafios a que se compromete para reforçar esta parceria?
É sempre importante ter visitas com altos cargos do Estado e isso tem acontecido. A nossa ministra dos Negócios Estrangeiros deverá vir visitar o ministro português brevemente. Tivemos também uma visita do nosso presidente federal em 2018, sendo que nessa visita também esteve na cidade do Porto. Foi um sucesso. Acredito que no futuro vamos continuar a ter este tipo de canais abertos. Na Embaixada, vamos estabelecer laços em todas as áreas. Dei conta de que em Portugal há várias instituições que integram a NATO, o que faz com o que país esteja a colaborar firmemente no âmbito militar. Pessoalmente, irei procurar visitar estes locais, pois fico muito impressionada com esta colaboração. Portugal tem uma posição importante como país que acolhe estas instituições. No que diz respeito à questão económica, a visita ao Porto confirma aquilo que já sabia: há inúmeras empresas alemãs que aqui estão há décadas e são um sucesso. Apesar dos problemas decorrentes da pandemia, sendo que algumas empresas conseguiram até aumentar o volume de negócios.
Que avaliação faz sobre a comunidade alemã residente em Portugal?
A comunidade alemã está muito presente e é muito heterogénea. Tivemos uma reunião, na semana passada, com todas as instituições alemãs sediadas em Portugal e ficamos quase 20 pessoas ao redor de uma mesa. Falo de instituições como a Câmara de Comércio e Indústria Luso-Alemã ou da Irmandade de S. Bartolomeu dos Alemães, que já tem mais de 700 anos e opera no âmbito da cultura. Temos ainda os colégios alemães em Lisboa, no Porto e no Algarve. Todas estas instituições representam pontos de encontro e ajudam a comunidade alemã a estar em permanente contacto. Vemos também que esta comunidade, que já existe há várias décadas, está a ser reforçada por jovens famílias alemãs e nómadas digitais que vêm em busca de um novo estilo de vida. São pessoas para as quais Portugal representa um país muito atrativo e com muita qualidade de vida. Portanto, há uma comunidade que já está estabelecida há vários anos, mas também uma nova onda de alemães jovens que querem estabelecer-se aqui, trazendo sangue novo.
Sendo a Alemanha um país tão próspero em diferentes níveis, o que estas pessoas procuram aqui?
A nova geração não procura apenas um bom emprego que paga muito bem para poder ter uma vida confortável. Acredito que estes jovens procuram um equilíbrio entre o trabalho e a vida pessoal, estando em busca de maior flexibilidade, o que também se traduz em mobilidade do trabalho. A maior questão não é só quanto ganham, mas também se podem trabalhar a partir de casa e se podem ter uma vida familiar equilibrada. Por outro lado, Portugal é um país muito atrativo em outras questões, como na educação e no clima.
Que ação pondera a Embaixada Alemã em Lisboa tomar no sentido de apoiar a participação cívica desta comunidade na sociedade portuguesa?
A adaptação dos alemães tem sido fácil porque mesmo quando ainda não dominam a língua portuguesa, a comunicação é facilitada pelo inglês. Acredito que a integração se faz, sobretudo, nos colégios, frequentados pelas crianças e jovens. Até agora, a conexão foi também sendo feita através de uma associação alemã que fazia eventos, festas e excursões, mas o futuro das relações entre a comunidade deverá passar mais pelas redes socais.
No que diz respeito às relações económicas, a Alemanha é um dos principais parceiros comerciais de Portugal. Conta com importantes projetos de investimento em território nacional, como por exemplo a fábrica da Volkswagen Autoeuropa, em Palmela. Qual a importância destes polos industriais?
São empresas muito importantes, uma vez que oferecem emprego a milhares de portugueses, contribuindo para as exportações do país. São empregos com muita segurança, mas vejo também que estas empresas se desenvolveram muito nos últimos anos. No caso da Leica, por exemplo, durante os primeiros anos aqui em Portugal apenas produzia os componentes base e depois enviava-os para a Alemanha para serem montados e transformados num produto final. Agora, o processo de produção é todo realizado aqui. Mesmo a parte técnica e da inovação é feita cá dando emprego a muitos engenheiros portugueses. E isto acontece com muitas outras empresas. A Mercedes e a Volkswagen, duas grandes empresas automóveis, são também bons exemplos disso, estando a recrutar, nas maiores universidades do país, talento português.
Relativamente à questão energética, e numa altura que em que a Alemanha admitiu que os atos de sabotagem nos gasodutos Nord Stream 1 e 2 causaram danos irreparáveis, quais serão as alternativas, a longo prazo, para um país com dependência tão grande da energia russa?
Depois desta guerra ser desencadeada o chanceler alemão comunicou uma mudança dos tempos. Este discurso aconteceu poucos dias após o início do conflito e mudou completamente a forma como olhamos para o abastecimento de gás. A verdade é que dependíamos muito do gás russo, que chegava através do Nord Stream 1, e durante estes nove meses já temos vindo a reduzir a nossa dependência energética da Rússia. Já não importamos gás e petróleo russo por via direta, algo que no início do ano parecia impossível. Aliado a isso temos as sanções europeias que não permitem a compra de petróleo russo e estamos a colocar em curso uma mudança daquilo que é o conceito energético. Há alguns anos que deixamos de lado as centrais nucleares e apostamos na energia renovável. O que mudou agora, e este foi o impulso da guerra, é que esta mudança vai fazer-se em menos tempo.
Ainda que o novo gasoduto de hidrogénio e gás natural que vai partir de território português não chegue, pelo menos para já, à Alemanha, o chanceler germânico felicitou o progresso. Esta poderá ser uma alternativa para o futuro?
Espero que sim. Apesar deste tipo de construções serem muito demoradas, acredito que o futuro passa por conexões diretas com este gasoduto a partir da Península Ibérica por via de França. Por isso, é que o chanceler apoiou Portugal e Espanha nos últimos esforços que têm sido feitos.
Que tipo de apoio a Alemanha tem prestado à Ucrânia no esforço de guerra, já que, inicialmente, o país se mostrou cético em relação ao envio de armamento para o terreno?
Desde o início da guerra que a política alemã veio-se alterando, já que era muito restritiva no que diz respeito à exportação de armas. É uma política que é baseada no nosso desejo de exportar armas apenas para regiões que não são de conflito. No entanto, no momento em que a Rússia agrediu este território a situação também se tornou diferente. Já não se tratava de uma região de conflito por si só, mas sim de um país que tinha direito a defender-se, o que está previsto na Carta das Nações Unidas. É uma situação diferente e muito prontamente a Alemanha respondeu. A ideia de que Berlim não se prontificou a ajudar a Ucrânia é um mito. Foi enviado muito material bélico, mas só alguns meses depois essa ajuda foi tornada pública, por isso, acho que se trata de uma acusação injusta.
Encontra semelhanças entre o ambiente que se vive atualmente no contexto internacional e o cenário que se viveu durante a Guerra Fria?
Não vejo muitas semelhanças com a guerra fria, mas depois deste período, achávamos que as regras que foram estabelecidas nas Nações Unidas e no Direito Internacional, para respeitar as fronteiras e a soberania, iriam ser respeitados por todos. Isto não está a acontecer. Apesar de não ser um conflito direto entre dois blocos, existe um desafio para que as regras, que são a base da nossa cooperação e da convivência internacional, sejam respeitadas. Isto não é só uma contra posição do Ocidente contra a Rússia. Todos os países, sejam da América Latina, de África ou da Ásia têm o interesse em apoiar estas normas, porque são regras que também protegem a sua soberania.
Este verão, durante uma entrevista, Angela Merkel admitiu que sabia que Vladimir Putin queria destruir a Europa. Uma postura diplomática mais rígida por parte da antiga chanceler teria evitado as pretensões do presidente russo?
Diria que é uma pergunta que deve ser feita aos próprios políticos que estavam no poder na altura.
Considera que a viagem de Olaf Scholz à China no início deste mês foi apropriada? Tendo em conta a conduta que Pequim tem adotado recentemente, sobretudo no que diz respeito à questão dos direitos humanos...
A razão para o chanceler fazer esta visita passou por estabelecer um contacto pessoal com o líder da China, algo que ainda não tinha acontecido desde que chegou ao poder. A postura da Alemanha para com a China é uma postura muito integrada e concertada com os outros países da UE. Em muitas questões globais e regionais, e.g. as alterações climáticas, a China é um parceiro de cooperação indispensável. Por outro lado, Pequim é um forte concorrente no âmbito do comércio internacional. E por fim é um rival sistémico, e não nos esquecemos de problemas como os direitos humanos ou da liberdade de imprensa, aspetos que foram trazidos para a conversa pelo chanceler alemão.