Isabel II parte aos 96 anos. Sucede-lhe o filho mais velho, Carlos. Reinado de sete décadas entre todas as crises e convulsões na Casa de Windsor.
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Foi uma história de amor, a do tio Eduardo VII (para poder casar com uma plebeia divorciada, renunciou à Coroa, a favor do irmão), que destinou a primogénita de George VI à primeira linha da ordem de sucessão ao trono e ao mais longo reinado da Casa de Windsor. Inesperado, mas nada por acaso: foram sete décadas de todos os afetos e também de desafeições da família real, a que se junta o exercício de influência política nos corredores do poder, que hão de perdurar para lá da morte de Isabel II, anunciada ontem. Sucede-lhe o filho mais velho, Carlos, de 73 anos.
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Isabel Alexandra Maria morreu aos 96 anos, em Balmoral, retida por problemas de saúde no castelo escocês que a acolheu nas últimas semanas e onde na última terça-feira, já visivelmente fragilizada, ainda acolheu e indigitou Liz Truss para o cargo de primeira-ministra, a 15.ª chefe de Governo nomeada nos 70 anos de reinado da rainha mais longeva da história britânica.
O próprio retiro das Highlands - onde a família real se concentrou durante o dia de ontem, num protocolo anunciador do falecimento, comunicado ao final da tarde - remete para um final deslumbrante e cinematográfico, da mesma sétima arte que celebrou "A Rainha" (Stephen Frears, 2007), com a magistral interpretação de Helen Mirren ou como antes, em 1939, Bette Davis tinha encarnado "A vida privada de Elizabete" (Michael Curtis), com todas as tradições seculares e todos os dogmas e intrigas que atravessam os tempos.
Isabel nasceu em Londres, em 21 de Abril de 1926. Foi a quadragésima monarca depois do rei Guilherme I (Guilherme, o Conquistador). Neta da rainha Vitória começou a ter participação na vida pública aos 14 anos. Estudou História Constitucional e Direito, arte e música e recebeu formação religiosa do Arcebispo de Cantuária. E era já herdeira do trono quando, aos 18 anos, alistada nas Forças Armadas Britânicas, sujava as unhas no arranjo de motores, para deleite dos jornais da época, orgulhosos com o trabalho da "Princesa Mecânica", e para a própria forjar uma personalidade tenaz, que não se lhe adivinhava na frágil estampa, sobretudo nos últimos anos.
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Soberania e influência
Em 1952, foi proclamada rainha na Abadia de Westminster, onde acorreram chefes de Estado e representantes das casas reais europeias. Fez história a transmissão televisiva da cerimónia e dos festejos da coroação. Foi só o início de um reinado que personificou um raro polo de estabilidade. Isabel II personificou a união dos britânicos na turbulência do reino e da própria família, como sucedeu no verão de 1997, no acidente que vitimou a princesa Diana e que expôs todas as fragilidades e dissidências na Casa de Windsor, mais do que nunca abalada na sua privacidade.
Apesar do diminuído papel político a que a monarquia britânica se viu reduzida após a II Guerra Mundial, Isabel II procurou preservar o carácter unificador da Coroa no espaço político do antigo império. Recuperou a influência e soberania e lidou com crises políticas de toda a ordem, desde logo as que mais perturbaram o reino: a Guerra das Malvinas, entre abril e junho de 1982, que opôs o Reino Unido à Argentina, pela posse dos arquipélagos austrais das Malvinas, da Geórgia do Sul e de Sandwich do Sul; as sangrentas dissidências na Irlanda do Norte e, mais recentemente, com as pretensões independentistas da Escócia e ou com a separação da União Europeia, na sequência do agitado processo do "Brexit".
Isabel II não só atingiu como superou a longevidade da avó Vitória, que teve um reinado de 55 anos. Todo um arco de grande alcance, que lhe permitiu, ao longo de sete décadas, reforçar o prestígio da casa real britânica, apesar de tantas crises familiares.
Por ela passaram 15 primeiros-ministros, de Winston Churchill a Liz Truss. Manteve com todos estreito contacto, em audiências semanais, e tomava conhecimento de todos os diplomas emitidos pelo Conselho de Ministros e recebia todos os despachos do Ministério dos Negócios Estrangeiros e da Commonwealth, assim como um resumo diário das sessões parlamentares.
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O miúdo da primeira fila
Lidou com 13 presidentes dos Estados Unidos, de Dwight Eisenhower a Joe Biden, foi contemporânea de James Bond e de todas as sequelas do espião mais famoso, privou com papas e dirigentes de todo o Mundo. Marcelo Rebelo de Sousa foi o último chefe de Estado português a ser recebido no Palácio de Buckingham, em 2016, e dessa ocasião sobram os registos do presidente da República a arrancar rasgados sorrisos à monarca, a recordar-lhe "a história do miúdo", o próprio, "que estava na primeira fila" da receção à rainha britânica no Praça do Comércio, em Lisboa, na primeira visita da monarca a Portugal, em 1957, na mesma digressão que também levou Isabel II ao Porto, onde foi recebida por milhares de pessoas, num cenário completamente controlado pelo regime.
Isabel II havia de voltar a Portugal já depois da Revolução de Abril, em 1985, mas foi pelo meio dessas duas visitas que havia de se registar o maior incidente entre os países da mais velha aliança. Foi em 1972, quando o que estava programado para ser uma visita de charme do regime português a Londres suscitou uma receção agreste a Marcelo Caetano, contestado por violentas manifestações de desagrado contra o regime instalado em Lisboa e contra a política colonialista, ao ponto de ter obrigado a antecipar o regresso do estadista.
Nada que a aliança de mais de seis séculos - foram assinalados este anos 650 anos do Tratado de Tagilde, assinado na freguesia de Vizela a 10 de julho de 1372 - não tivesse ultrapassado rapidamente, entre todas as convulsões políticas, sociais e culturais do século XX.
Isabel II viu nascer o fenómeno dos Beatles, assistiu ao colapso da União Soviética e da Jugoslávia, à Reunificação da Alemanha, às guerras do Vietname, do Golfo, do Iraque e do Afeganistão, ao fim do "Apartheid", à clonagem da ovelha Dolly e tantos outros eventos marcantes da História. A mesma narrativa em que Isabel Alexandra Maria terá uma marca indelével.