O presidente do país da NATO que andou a combater a Rússia na Síria e na Líbia andou também aos abraços com Putin, para selar a cooperação militar com Moscovo antes da invasão à Ucrânia. Ou as incongruências de um aliado que deixa os parceiros ocidentais com os nervos em franja.
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O estadista alardeado como grande mediador entre a Rússia e a Ucrânia e que patrocinou as conversações entre os chefes da diplomacia dos dois países, decorridas e fracassadas, esta quinta-feira, em Antalya, é o mesmo Recep Tayyip Erdogan, presidente de um país membro e fundador da OTAN, a Turquia, que, ainda em outubro de 2021, posou para posteridade, aos abraços com Vladimir Putin, em Sochi, para assinalar o que foi noticiado como o acordo de cooperação em programas de armamento assinado com Moscovo.
Washington e os aliados ocidentais irritaram-se com esta familiaridade, mas nada que tenha afetado "o novo sultão otomano", como lhe chamam os opositores dos corredores políticos de Ancara, também a denunciar-lhe a deriva antidemocrática e islamista no Estado laico fundado por Ataturk.
É este, afinal, o mesmo contorcionismo que faz do 12.º presidente da Turquia um político apontado pelos talentos de equilibrista diplomático, no domínio que a geolocalização sempre deu ao país, de Bizâncio a Constantinopla, a atual Istambul, onde Erdogan, quantas vezes acusado de antissemitismo, foi esta mesma quinta-feira anfitrião do presidente de Israel, Isaac Herzog, na visita que este fez à comunidade judaica, descrita como um "ponto de viragem" nas relações entre Ancara e Telavive.
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"As mulheres têm um papel, que é o de fazer filhos"
O ato diplomático de Erdogan só comprova a elasticidade do político destacado com a eleição para a Câmara de Istambul, em 1994. Nessa altura, aos 40 anos, teve de reprimir o rigorismo religioso que o animava e, entre outros torcegões éticos, coexistir num conflito de género, com as mulheres que trabalhavam lá nos gabinetes, as mesmas de quem não se coibiu de dizer que, "segundo o Islão, têm um papel na sociedade, que é o de fazer filhos".
Por estas e por outras, como o islamismo velado, o Partido do Bem-Estar, de que Erdogan foi fundador, não teve vida longa e foi dissolvido pelos tribunais, por atentar contra os princípios seculares determinados pela Constituição turca, o que obrigou o presidente da Câmara a fundar um novo movimento político, o Partido da Justiça e Desenvolvimento - "Adalet ve Kalkinma Partisi (AKP) -, com o qual chegou a primeiro-ministro, cargo que exerceu entre 2003 e 2014.
Por essa altura, o filho de um marinheiro turco, nascido a 26 de fevereiro de 1954, já não escondia a veia conservadora e islamista nem se cuidava de nenhuma derrapagem, com a efetuada numa declaração anunciadora: "A democracia é como um comboio quando chegamos ao nosso destino: saímos!".
O destino havia de o eleger presidente da República, em 2014, para um primeiro mandato que não seria concluído sem que realizasse a tentação de liderança autocrática: em 2017, através de referendo, a Turquia adotou o sistema presidencialista e concentrou todos os poderes no "sultão republicano", ainda mais reforçados após o golpe de Estado fracassado, um ano antes.
O golpe falhado e o presente de deus
O próprio Erdogan chamou ao "putsh" dos militares "um presente de Alá", porque lhe proporcionou a justificação para a vasta purga que se seguiu: segundo Ancara, foram detidos 8838 militares, 2101 juízes, 1485 polícias e 689 civis; de acordo com fontes internacionais, houve 145 mil detidos e 134 mil funcionários públicos despedidos.
Nesse dia 15 de julho de 2016, Erdogan estava de férias, a banhos, no sul do país, no Mediterrâneo. Alertado pelos serviços secretos russos, regressou imediatamente a Ancara e ao símbolo máximo do poder instalado, o "Ak Saray", o Palácio Branco, que os opositores do regime apontam como um edifício da corrupção e da destruição ecológica de uma área de 50 hectares, classificada e protegida. Erdogan fez de conta e concluiu a obra de toda a opulência: mais de mil aposentos e 270 milhões de euros investidos no grande emblema do poder do AKP.
Liberdades para que vos quero
È neste país, assinalado pelos Repórteres Sem Fronteiras como "a maior prisão do mundo para jornalistas", que também se relatam restrições às liberdades e garantias mais básicas, como a perseguição às comunidades curdas ou aos direitos das minorias, desde logo os dos cidadãos LGBT, o que também tem impossibilitado a adesão à União Europeia (UE).
Em 1987, a Turquia candidatou-se à entrada na então Comunidade Económica Europeia. Em 1999, foi declarada elegível para a adesão à UE, mas as negociações nunca avançaram e foram mesmo suspensas, em 2009, já na sequência de um de muitos conflitos territoriais e diplomáticos. Ancara pura e simplesmente não reconhece a República de Chipre (na parte da ilha de maioria grega) como estado-membro da UE, o que, logo à partida, trava qualquer desenvolvimento de adesão.
A ameaça permanente dos refugiados
É em toda esta encruzilhada que Erdogan joga no xadrez geopolítico, até a negociar acordos de cooperação militar com a Rússia, nas costas dos parceiros da NATO ou sem lhes prestar qualquer satisfação. E também a dirigir uma estratégia autónoma dentro da própria aliança, à margem dos aliados. Foi assim assim que interveio militarmente na Líbia e na Síria - onde combateu... os russos! -, no Iraque ou em apoio ao Azerbaijão, na guerra com a Arménia.
Em caso de contestação dos parceiros, Erdogan tem sempre um arremesso político à mão: ameaça abrir as fronteiras e deixar passar milhares, milhões de migrantes e refugiados em trânsito para o "el dorado" europeu. Foi por tudo isto, por todas estas contradições turcas, que, um dia, antes da invasão da Ucrânia pela Rússia, em dezembro do ano passado, o presidente da França fez um diagnóstico muito reservado da NATO. "Está em morte cerebral", disse Emmanuel Macron. O eco mal chegou ao Bósforo.