A Ucrânia saiu como entrou da cimeira da União Europeia. Pertence à "família", mas não ao "clube". Para lá chegar terá de fazer um longo caminho - "levará anos", notou o primeiro-ministro holandês Mark Rutte. Se o encontro de Versalhes, em França, vier a ser considerado "histórico", será mais pela mudança de rumo radical nas políticas de defesa e energéticas, que estão em cima da mesa neste segundo dia, do que pela resposta ao pedido ucraniano. Não haverá atalhos para a adesão.
Corpo do artigo
A declaração final lida por Charles Michel, presidente do Conselho Europeu, quando o relógio marcava as três da madrugada desta sexta-feira, era praticamente igual ao rascunho que o jornal online "Politico" revelou algumas horas antes do início da reunião. A UE reconhece as "aspirações" da Ucrânia, inclui o país na "família europeia", e até já pediu à Comissão que se pronuncie. Mas que o faça "em conformidade" com o que está nos tratados.
Uma linguagem burocrática que, na verdade, deixa claro que não haverá um atalho para a adesão da Ucrânia à União Europeia, como tinha sido expressamente pedido pelo seu presidente, Volodymyr Zelensky. Como refere o enviado do jornal espanhol "El País", citando o primeiro-ministro croata Andrej Plenkovicos, os ucranianos não saem da cimeira nem sequer com o estatuto de candidato.
Pedidos da Moldávia e da Geórgia
Em rigor, a Ucrânia saiu em pé de igualdade com a Geórgia e a Moldávia, outros dois países que fizeram chegar o seu pedido de adesão. Dois países, igualmente, que têm parte dos seus territórios ocupados pelas tropas russas. Na Transnístria, os russos têm um contingente militar desde 1992, na sequência de uma curta guerra civil entre os separatistas e a Moldávia. Na Abkhazia e na Ossétia do Sul, o exército russo assegura uma independência informal desde 2008, na sequência da invasão e guerra com a Geórgia.
Veja-se o que diz, na íntegra, o ponto quatro da declaração final: "O Conselho Europeu reconheceu as aspirações europeias e a escolha europeia da Ucrânia, tal como consta do Acordo de Associação. Em 28 de fevereiro de 2022, exercendo o direito da Ucrânia de escolher seu próprio destino, o presidente da Ucrânia apresentou o pedido da Ucrânia para se tornar membro da União Europeia. O Conselho agiu com celeridade e convidou a Comissão a apresentar o seu parecer sobre este pedido, em conformidade com as disposições pertinentes dos Tratados. Enquanto isso e sem demora, fortaleceremos ainda mais os nossos laços e aprofundaremos a nossa parceria, para ajudara Ucrânia a seguir seu caminho europeu. A Ucrânia pertence à nossa família europeia."
Uma noite pouco histórica
O presidente lituano ainda tentou disfarçar o indisfarçável, proclamando no Twitter que tinha sido uma "noite histórica". Mas essa terá sido apenas uma fórmula para aliviar as tensões entre os dois blocos europeus que se confrontaram nesta questão: um conjunto de países do Leste (com destaque para os três do Báltico) a tentar forçar um atalho; um conjunto de países mais ocidentais (como os Países Baixos e a França) a pôr água na fervura. E foi este último bloco que saiu vencedor.
Como referiam funcionários europeus veteranos a negociar processos de adesão, ainda antes de começar a Cimeira de Versalhes, são dossiês de enorme complexidade, incompatíveis com atalhos. E é até possível quantificar essa complexidade: os países candidatos têm de cumprir um acervo legal que soma cerca de 88 mil páginas com diferentes compromissos legais. A Europa será solidária com a Ucrânia (com apoio financeiro à sua defesa e futura reconstrução), mas vai cumprir os seus tratados.
Apostar tudo na defesa
O Conselho Europeu poderá ainda vir a ser considerado "histórico", mas por causa de outro tipo de decisões que decorrem dos efeitos da invasão russa da Ucrânia. Porque está hoje em cima da mesa, na segunda parte do encontro dos líderes dos 27, uma mudança de rota de 180 graus nas políticas de defesa e energética.
Como se pode ler no primeiro ponto do rascunho da declaração final, que já foi divulgado pelo El País, a Europa precisa de "aumentar substancialmente os gastos de defesa". No ponto seguinte, destaca-se a necessidade de "reduzir a independência do gás, do petróleo e do carvão russos". Resumindo, garantir a segurança europeia pela via das armas e da autonomia energética.
Alemanha investe no armamento
Depois do período que se seguiu ao fim da "guerra fria", em que o conjunto de países europeus reduziu os seus gastos com defesa de 4% para 1,5% do Produto Interno Bruto, inverte-se a rota. O primeiro país a assumir que assim será foi a Alemanha, que, poucos dias depois do início da guerra, anunciou a intenção de investir de imediato 100 mil milhões de euros em armamento, aumentando as despesas militares para 2% do PIB e, a médio prazo, para 3% do PIB.
No já referido rascunho da declaração final que sairá do Conselho de Versalhes, estão incluídas frases como o "aumento substancial dos gastos com a defesa"; a necessidade de "desenvolver incentivos e estimular o investimento partilhado dos Estados-membros em projetos de aquisição conjunta de capacidades de defesa"; o objetivo de "fortalecer e desenvolver" a indústria de defesa europeia"; e até a vontade de "fomentar sinergias entre a investigação e a inovação civil, de defesa e espacial, e investir em tecnologias e inovação críticas e emergentes para a segurança e a defesa". Uma sucessão de frases que demonstram que os tempos estão mais de feição para os falcões da guerra do que para as pombas da paz.
Discussão sobre dívida comum
Mas, se há unidade nos objetivos, pode haver divisão no caminho para lá chegar. Quer no mecanismo de defesa prioritário - os Países Baixos preferem o reforço da NATO, o presidente francês aponta para uma estratégia de defesa europeia independente, ainda que complementar à da NATO -, quer na forma de financiar este acréscimo de gastos.
Seja para a despesa com o rearmamento da União Europeia, seja para cumprir o objetivo estratégico de anular a dependência energética da Rússia, tem sido discutido nos bastidores a possibilidade de criar um fundo comum financiado por dívida pública europeia (à semelhança do que se fez, pela primeira vez, para implementar o Plano de Recuperação e Resiliência do pós-pandemia). Foi mais uma vez Macron o primeiro a expressar publicamente essa possibilidade (e já recebeu o apoio explícito da Itália). A Alemanha, no entanto, já baixou as expectativas. A declaração final de hoje ajudará a perceber se poderá ser esse o caminho.