Filipe Duarte Santos, especialista em alterações climáticas, analisa, ao JN, o acordo alcançado em Glasgow.
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Após longas negociações, e depois da reviravolta provocada pela Índia na resolução do carvão, chegou-se a acordo na COP26. Como avalia o Pacto Climático de Glasgow?
O documento final tem aspetos positivos, avançando-se de forma significativa em vários pontos, com compromissos assumidos por vários países de descarbonização para 2050 e 2060 e a Índia para 2070. Evidentemente que já se sabia que a Índia seria dos países mais problemáticos em termos de cumprimento do Acordo de Paris. É um país com uma população muito grande, com emissões per capita muito baixas, um Produto Interno Bruto per capita muito baixo e que tem o desejo de um maior desenvolvimento. Para isso precisa de energia e o modelo de desenvolvimento a nível mundial é baseado no consumo excessivo de energia.
No caso da Índia, o carvão.
A energia barata e acessível que eles têm é o carvão. É um país que tem muito carvão e barato. Estão a fazer um esforço nas renováveis, mas é um investimento gigantesco e os países com economias avançadas têm ajudado, mas não é suficiente e eles dizem que não têm capacidade para fazer esse investimento para substituir o carvão pelas renováveis.
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Como ler esta alteração na resolução do carvão, passando-se do fim do seu uso à diminuição?
O acordo no carvão era muito desejável, porque é o que emite mais dióxido de carbono (CO2) para a atmosfera. Se comparar a emissão de CO2 que gera um quilowatt hora de energia numa central térmica a carvão é maior do que a gerada pelo petróleo e este maior do que o gás natural. Por isso é que quando os países fazem a transição do carvão para o gás natural, como Portugal, diminuem muito as emissões.
Que outros problemas identifica?
Há um problema que persiste e é difícil de comunicar. É que o Mundo tem um orçamento de carbono para gastar sem ultrapassar os 1,5 graus Celsius. Porque se ultrapassar esse orçamento a temperatura aumenta mais que 1,5 graus.
Estamos acima do orçamento?
Como fomos adiando este problema durante anos e anos até chegar a esta emergência, agora é muito difícil, praticamente impossível, fazer a transição energética que nos permita cumprir esse tal orçamento que nos deixa abaixo de 1,5 graus. E isso é uma coisa que tem que ficar decidida nesta década, por isso é que a COP e esta década são cruciais.
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O que muda nesta COP?
As COP têm sido todas deste tipo, mas a diferença é que, pela primeira vez, sinto que as pessoas, os adultos, estão a ficar assustados. E os governantes também. Porque há uma evidência que entra pelos olhos adentro, que são os efeitos das alterações climáticas a começarem a sentir-se e a ter impacto na economia dos países. Mas esta transição energética vai ser muito disruptiva. Por exemplo, só na China há 1,3 milhões de mineiros de carvão. E já está a ser disruptivo e temos aqui, em Portugal, a evidência, num Outono sem chuva. A transição não vai ser suave, vai ser complicada.
No texto final assume-se o compromisso de reduzir a emissão de gases com efeito de estufa (GEE) em 45% até 2030.
No nosso caso, Portugal assume uma diminuição de 45% até 2030. E vai ser muito difícil. Agora há países que não podem fazer esta afirmação, como a Índia, porque a disrupção na sua economia era gigante. A redução de 45% nos GEE é suficiente. O problema é que se somarmos os planos de redução de emissões - as NDC, contribuições nacionalmente determinadas - , se somarmos os resultados de todos esses documentos, as emissões aumentam 16% até 2030. Com as atuais NDC temos um aumento de 16%, daí a pressão feita por António Guterres. E só a redução de 45% é que permite não ultrapassar os 1,5 graus. Mas na COP26, além das NDC, fizeram-se anúncios de longo prazo, como a Índia, de que ia descarbonizar até 2070. É muito bem-vinda, uma intenção excelente, mas pode-se duvidar que consiga. Outros que puseram a data de 2060. Se formos contabilizar todas essas declarações, mas não substanciadas em documentos, se formos crédulos e acreditarmos que todos esses compromissos de longo prazo são cumpridos, isso implica que vamos de facto chegar aos 1,8 graus Celsius.