Necessidade de prestar auxílio a Kiev colocou em evidência lacunas no seio dos exércitos. Especialista militar acusa Europa de viver "à sombra" da segurança fornecida pelos EUA.
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A propósito do envio de armas para a Ucrânia, uma grande parte dos estados europeus viu serem expostas as fragilidades de cada arsenal nacional. As lacunas emergiram impetuosamente quando Volodymyr Zelensky suplicou por tanques pesados. Depois da resistência alemã em autorizar a entrega de Leopard 2 ao país invadido, chegou o desejado consenso, mas com ele emergiu outro problema: uma vasta fatia dos blindados disponibilizados pelas nações estava inoperacional. A luta pelo fornecimento de carros de combate a Kiev é a manifestação mais flagrante de uma realidade à qual o Velho Continente se agarrou: acreditar que a guerra terrestre em grande escala era coisa do passado.
"Como é que, ao fim de um ano de guerra, o material continua inoperacional? Ninguém consegue perceber. Do meu ponto de vista, isto tem a ver com o facto de termos [Europa] deixado cair as cadeias logísticas", analisa o major-general Arnaut Moreira, acrescentando que "a indústria de defesa europeia não tem capacidade imediata de reagir às necessidades que têm surgido".
"À sombra da proteção que os EUA nos têm dado, desprezamos a nossa responsabilidade: defender a Europa"
Em Portugal, o panorama não varia. Quando o primeiro-ministro António Costa anunciou, no início de fevereiro, que iriam ser enviados, até ao final de março, três tanques Leopard 2 para auxiliar o Exército ucraniano, deixou claro que estes não estavam em condições de ser usados no imediato. Como tal, seria necessário trabalhar com a Alemanha "para assegurar a cadeia de abastecimento".
As declarações do chefe do Executivo clarificaram que os veículos estavam sem manutenção há tempo indefinido, mas não esclareceram quantos blindados estariam nesta situação. Contactado pelo JN, o Ministério da Defesa não explicou, em tempo útil, qual foi o critério usado para terem sido enviados três carros, apesar de remeter para as recentes declarações da responsável da tutela, Helena Carreiras, que destacou a posição do país: dar sem comprometer.
A falta de investimento em novos veículos também se tornou premente quando a Alemanha, Países Baixos e Dinamarca lançaram uma iniciativa conjunta para reformar e enviar 150 modelos Leopard 1 para a Ucrânia até ao final do ano. Recentemente, numa sessão de treinos para soldados ucranianos, em Berlim, as altas patentes militares foram forçadas a contratar motoristas aposentados com capacidade para dirigir os veículos e dar instrução aos combatentes, colocando em evidência a versatilidade de ferramentas arcaicas e a carência de armas preparadas para as atuais adversidades.
"Foi preciso recorrer aos materiais que estão em serviço, mas verificou-se que esses materiais não estão em condições de operacionalidade. Há aqui um certo atraso da Europa em olhar para a operacionalidade dos seus equipamentos", observa o especialista em geoestratégia, que já atuou como subdiretor-geral de Política de Defesa Nacional.
Questionado sobre se, ao longo dos últimos anos, os estados tivessem cumprido a meta da NATO de gastar 2% do PIB em Defesa, a situação seria diferente, o também ex-diretor de Comunicações e Sistemas de Informação do Exército não tem dúvidas: "Certamente que sim", afirmou, destacando que, neste momento, a Europa "está a aproveitar-se da segurança fornecida pelos EUA".
Credibilidade militar
"Enquanto os contribuintes americanos estavam a investir na defesa da NATO, a Europa estava a fortalecer o sistema convencional russo ao comprar-lhe gás", atira o major-general, lembrando ainda que, "à sombra da proteção que os EUA nos têm dado, desprezamos a nossa responsabilidade".
Ao longo de vários anos, Washington tem importunado os europeus para que estiquem o orçamento com gastos militares e, em 2014, depois de a Rússia anexar a Península da Crimeia, os estados-membros da Aliança Atlântica concordaram em gastar 2% do PIB até 2024. Pelas estimativas atuais da organização, contudo, as pretensões não estariam a ser cumpridas, já que apenas nove dos 30 membros estavam realmente empenhados em alcançar a meta.
É expectável, ainda assim, que os dados mudem, tendo em conta que as nações que integram a estrutura militar concordaram, no final do ano passado, em aumentar o orçamento civil da organização para 2023 em 27,8%, enquanto o militar aumentará 25,8%, o que requer um maior esforço individual de cada país integrante.
"A NATO não pode perder a credibilidade enquanto instrumento da arquitetura de segurança e defesa da Europa. Tem de contribuir para essa credibilidade, fazendo com que, através do incremento dos seus orçamentos de defesa, lhes permita comprar o equipamento que garanta em permanência essa credibilidade. É a credibilidade militar que garante a nossa segurança. E essa credibilidade militar é medida em números e também em orçamentos", sustentou o analista militar.
Apesar do conflito que eclodiu no Leste da Europa, na perspetiva de Christian Molling, especialista em defesa do Conselho Alemão de Relações Externas, "a tendência geral nos exércitos europeus é cortar", referiu, em declarações ao jornal "The New York Times".
Á lupa
Ajuda de Portugal
No final de fevereiro, a ministra da Defesa Nacional, Helena Carreiras, anunciou que, com o envio dos três tanques Leopard 2 para a Ucrânia em março, a ajuda de Portugal a este país vai chegar às 712 toneladas de material letal e não letal.
Dúvida sobre caças
Apesar da disponibilidade de vários países para enviar tanques e outro tipo de armamento para o Exército ucraniano, a maior parte dos governos europeus afasta a possibilidade de serem enviados aviões de combate.