Ofensiva lançada por Moscovo a 24 de fevereiro de 2022 atirou a Europa para a maior crise de segurança desde a Segunda Grande Guerra. O número de civis mortos na Ucrânia ultrapassou esta semana os oito mil, segundo a ONU. A guerra gerou já mais de 14 milhões de deslocados, oito milhões deixaram o país.
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Há um antes e um depois daquela madrugada de 24 de fevereiro de 2022. Com a invasão russa de um Estado soberano, no extremo Leste da Europa, reconfiguraram-se as dinâmicas que regem o xadrez internacional e as velhas fragilidades emergiram como ferida exposta. À guerra efetiva, que há um ano se desenrola no terreno de uma Ucrânia que luta pela preservação da sua integridade territorial, somou-se uma atmosfera de Guerra Fria que veio impor clivagens e reeditar uma bipolarização do Mundo. Da ofensiva em grande escala orquestrada por Moscovo em solo ucraniano retiram-se, um ano depois, ilações que contrariam previsões iniciais e apressadas. "Quando nos atacarem, vão ver os nossos rostos, não as nossas costas", atirou o líder ucraniano, Volodymyr Zelensky, no dia em que viu os primeiros mísseis a cruzar os céus da nação a que preside. Palavras proféticas, que traduziriam a resistência de forças militares e civis que, ao contrário do que se postulava, não caíram depois de uns poucos dias de conflito, amparadas desde então pelo suporte massivo, militar e humanitário, dos aliados ocidentais.
Entraram pelo Norte, pelo Leste e pelo Sul, através da Crimeia, península anexada ilegalmente em 2014 e onde primeiro Moscovo revelou as suas aspirações de apropriação territorial sobre a Ucrânia, que em 1991 se havia libertado do domínio russo, com o desmoronar da União Soviética. Com as Forças Armadas ucranianas em clara desvantagem face ao poderio militar e nuclear russo, multiplicaram-se desde o primeiro dia de agressão as súplicas à comunidade internacional por apoio, sobretudo militar, que permitisse reduzir a desvantagem num quadro de resistência que em tudo remetia para um embate entre David e Golias.
Logo a 25 de fevereiro, uma resolução do Conselho de Segurança da ONU exige a retirada das tropas russas, que Moscovo, membro permanente, trata de vetar, empenhada numa "operação militar especial" que visa "desmilitarizar e desnazificar" a Ucrânia. A NATO, que há anos subsistia em modo letárgico, ativa a sua força de reação rápida para "evitar transgressões" em território aliado, e desdobra-se ao longo do ano em campanhas de persuasão dos seus membros no sentido de reforçar o apoio militar a Kiev.
A tentativa desesperada da Ucrânia de aproximação ao bloco comunitário dá-se no dia 28, com a apresentação do pedido formal de adesão à União Europeia - o estatuto de país candidato ser-lhe-ia atribuído a 23 de junho. No plano da diplomacia, falham as escassas rondas de negociações entre os dois estados em conflito, que decorrem na Bielorrússia.
Enquanto no Ocidente se discutem as primeiras sanções a aplicar à Rússia - à quais a China se opõe, mantendo laços económicos e comerciais com Moscovo -, do terreno surgem notícias, logo no início de março, que desencadeiam a indignação internacional, como os fortes bombardeamentos nas imediações da central nuclear de Zaporíjia, a maior da Europa, a tomada de Kherson ou o ataque a uma maternidade em Mariupol, cidade que seria arrasada pelas forças russas, mantendo um temporário foco de resistência na fábrica siderúrgica de Azovstal.
Desvenda-se o lado mais sombrio da guerra com a descoberta em Bucha, no início de abril, das primeiras valas comuns, onde mais de 400 corpos exumados apresentam sinais evidentes de tortura, cenário que se replicaria em Kharkiv, Izium, Kherson e noutras áreas reconquistadas.
No final de agosto, a Ucrânia põe em marcha uma contraofensiva com que vai conseguindo reverter os ganhos iniciais de Moscovo. A 8 de outubro, provoca uma explosão na Ponte da Crimeia, o primeiro grande triunfo acontece a 11 de novembro, com a reconquista de Kherson, que Zelensky descreve como o "início do fim da guerra".
A agilidade das unidades ucranianas, com um comando descentralizado, impõe baixas significativas no lado inimigo, forçando-lhe a revisão dos planos de batalha. Com recurso a armamento norte-americano, como o sistema de lançamento de rockets HIMARS, ou artilharia de longo alcance francesa e polaca, os ucranianos conseguem degradar a capacidade ofensiva russa, ao atingir postos de comando, armazéns de munições ou depósitos de combustível, enquanto vão aplacando parte dos ataques de mísseis e drones com recurso a sistemas de defesa antiaérea do Ocidente.
Súplicas por armamento
Mas não basta. Ao longo de todo o ano, o fornecimento de armamento domina o debate da guerra, com os apelos diários do presidente ucraniano por armas pesadas que se vão revertendo em conquistas que, ainda assim, não acompanham as necessidades dos ucranianos, com os russos a atingir, desde outubro, grande parte das infraestruturas críticas e energéticas do país.
A 13 de dezembro, os Estados Unidos anunciam o envio de duas baterias do sistema de defesa antiaérea Patriot, a que a Alemanha se junta a 5 de janeiro. Zelensky insiste no envio de tanques pesados, nomeadamente os Leopard 2, de fabrico alemão. Só a 14 de janeiro o Reino Unido garante a entrega de 14 dos seus tanques Challenger 2, com a Polónia a exercer pressão crescente sobre Berlim para que conceda aos aliados a licença de reexportação dos Leopard 2 de que dispõem. Algo que a Alemanha só desbloqueia a 25 de janeiro, juntando-se à coligação internacional - que integra Portugal - para envio destes carros de combate, e assumindo o compromisso de fornecer 14 dos seus Leopard 2 no final de março deste ano. No mesmo dia, Washington, que só aguardava o avanço de Berlim, compromete-se a enviar para a Ucrânia 31 tanques Abrams M1.
Mas Zelensky não esmorece o ímpeto por armamento, e reitera os apelos por mísseis de longo alcance, como os desejados ATACMS - norte-americanos, com um alcance de 300 quilómetros -, e aeronaves de combate, como os caças F-16, que constituem uma linha vermelha para os aliados ocidentais, que receiam fornecer armamento que permita a Kiev atingir território russo. O calcanhar de Aquiles do exército ucraniano continua a ser, contudo, o défice de munições, face à vasta reserva russa de artilharia e sistemas de rockets.
Bipolarização em crescendo
Numa altura em que se preconiza uma nova ofensiva russa em larga escala, que terá como propósito o cerco total às províncias de Donetsk e Lugansk, no Donbass, e em que a União Europeia se prepara para anunciar o décimo pacote de sanções à Rússia, para estancar as fontes de financiamento da sua máquina de guerra, teme-se a aproximação crescente entre Pequim e Moscovo.
Ao anúncio, esta semana, de Vladimir Putin, de suspensão da participação russa no tratado de desarmamento nuclear New Start, assinado com os Estados Unidos em 2010, soma-se a presença, esta quarta-feira, de um alto quadro do regime chinês em Moscovo, o diplomata Wang Yi, que vem reforçar a aliança da Rússia com o gigante asiático. Ligações geopolíticas que trazem o Mundo em suspenso, perante a ameaça de uma escalada que poderá assumir dimensão global.