Retrato covid: país da África Ocidental tem apenas 1/4 da população vacinada mas regista só 166 mortos desde início da pandemia. Como se explica o sucesso imprevisto?
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Tomane Baldé, 58 anos, alto-comissário para a covid na Guiné- -Bissau, abre o iPhone e o seu semblante satura-se. Abana a cabeça, solta um "ai": está a ver o mapa da Ucrânia carregado com os pontos vermelhos das bombas da Rússia. "Ai, ai, pobres de meus amigos ucranianos" - e emudece-se uns segundos, olhos espetados no ecrã. O médico tirou curso em Dombass, sudeste da Ucrânia, onde nos anos 80 foi estimado e feliz. Recompõe, diz: "Essa guerra vai ser pior que a pandemia".
Baldé já não se abala com o coronavirus na Guiné: o país da África Ocidental que se desoprimiu de Portugal em 1974 tem somente 166 mortos por covid desde 2020 (ler ao lado). Ele sorri numa maneira amena: "Começamos a luta no vazio, temíamos o pior, nem termómetros havia" - nem oxigénio, ventiladores, máquina móveis de radiografar, nada, era como se estivessem nus a ver o tsunami pandémico pinchar. Mas o mais mau não chegou. "A primeira ajuda veio de Portugal, que manteve a ponte aérea mesmo quando o Mundo fechou. Oxigénio, ventiladores, o empresário Manuel Mesquita mandou equipas, fez manutenção, formação, ajuda que agradecemos", diz, sereno, Baldé.
há muito pior que a covid
Em Bissau, cacofónica capital de meio milhão de pessoas onde o comércio medra nas ruas, exuberante entre o pó rubro, o calor e o zunido dos táxis coletivos Mercedes 190, muito puídos e soantes, de azul coruscante, a pandemia parece não ter credibilidade e são raras as caras mascaradas - e o mesmo se passa nas casas, lojas, mercados, ministérios ou hotéis.
"Não é que a pandemia não seja séria, que é", diz agora Sílvio Coelho, diretor-geral do Hospital Central Simões Mendes, "mas já aprendemos a conviver com ela e o nosso pico pior já passou". Foi em meados de 2020: "Situações muito graves intra-hospitalares, unidades inteiras infetadas, falta de recursos, previa-se a catástrofe; felizmente, a mortalidade foi sempre baixa", diz aliviado o amável médico, que é sportinguista.
O grande hospital verde-branco está parcamente equipado, mas aí sim, há avisos, álcool gel, anda-se de máscara. Isidro Nunes, médico diretor dos serviços covid, guia-nos pelos corredores descascados e quartos quentes sem A/C, onde as camas não têm lençóis e os relógios na parede pararam.
Num quarto estão deitadas três mulheres, todas suspeitas, magras por demais: Deodata, 35 anos, anémica; Samna, 28, desnutrida, seropositiva; e Iana, 16, tem tuberculose. As três, muito mudas, olhos grandes como ostras pretas, são todas covid negativo, os seus problemas são piores. O médico exala: "África tem doenças bem piores que a covid: paludismo, HIV, tuberculose, febre tifoide, broncopneumonia, enfermidades diarreicas que ceifam tantas vidas, tantas crianças. Se fosse só o coronavírus estávamos bem", diz a esboçar um sorriso meio triste.
População é jovem e rija
Apesar de a vacinação avançar lenta, o país é um oásis no aborrecido deserto pandémico. "Aqui temos todos os germes possíveis, a nossa imunização já é natural", torna Tomane Baldé. E explica mais: "População muito jovem, muito calor todo o ano, casas muito arejadas, somos muito resistentes, a pandemia já vai passar".
Fruto da crise sanitária, hoje o hospital de Bissau está mais bem equipado que nunca. Mas o mundo das suas enfermidades vai continuar a pular. E do quarto de Deodata, de Samna e de Iana, sempre de janela aberta, vê-se a uns meros metros lá fora montículos de lixo onde esticam asas negras e bicos muito abertos vários abutres de cabeças carecas com os seus olhinhos vermelhos a raiar.
Dados
Covid em baixa
Desde 2020, a Guiné-Bissau registou 166 mortos por covid-19. Soma, até agora, 7985 casos, 835 dos quais estão ativos, 14 deles internados, seis em estado crítico. O país tem 2,04 milhões de habitantes.
Escassa testagem
Até hoje, foram testadas 123 254 pessoas (média de 60 mil por 1 milhão, taxa muito baixa). A faixa etária que mais dá positivo é: 25-34 anos.
514 mil vacinados
514 mil pessoas já têm a primeira dose e 337 mil a segunda. Ainda não há doses de reforço. Nos menores de 18 anos ninguém se vacinou. AstraZeneca, Janssen e Sinovac são as marcas administradas.