Anatomia de uma desgraça: 20 dias após a tentativa falhada de golpe de Estado apontada ao narcotráfico, sobram oito mortos e muita irresolução. O JN esteve com a viúva de um soldado caído e com uma mãe que tremeluz pelo filho perdido.
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Amadu Djaló, 50 anos, motorista do ministro da Defesa da Guiné-Bissau, esteve seis horas a esvair-se em sangue depois de lhe tricotarem uma rajada de metralhadora na barriga que o deixou de entranhas expostas; às 6 horas da tarde estava falecido. A viúva Aua Sanha, muçulmana como ele e a maioria da população, recebeu cinco sacos de arroz e três caixas de óleo de compensação; atravessa agora o seu luto branco numa casinha de dubi, feita de lama e água, no pobre bairro de Plulobá, e o seu choro é seco, mudo e abdicado.
O corpo de Decker Filipe Imbaná, 29 anos, motorista e segurança do presidente Umaro Sissoco Embaló, ficou espedaçado em tantas partes que ninguém teve coragem de deixar a sua mãe, a católica Graciete, aproximar-se, ver e despedir-se do corpo do filho finado, o único que tinha cá (outros três abalaram para Lisboa). Decker foi atingido em cheio pelo relâmpago surdo duma bazuca e morreu em carne viva imediatamente, os retalhos irradiados na estrada.
São os mártires amortecidos, entre oito mortos e dez feridos, da tentativa de golpe de Estado de 1 de fevereiro em Bissau, capital da Guiné. O golpe faliu em cinco horas de rebelião após cerco restrito, das 13 às 18, ao Palácio do Governo, enquanto corria o Conselho de Ministros regido pelo presidente Embaló - o gabinete fugiu todo pelas traseiras. Embotado como as nebulosas de pó rubro que se erguem das artérias mansas e quentes da cidade parcamente asfaltada, o golpe teve dois inéditos históricos: foi executado de dia e estará ancorado, diz a versão una e oficial, na manta oculta de narcotraficantes.
Pobre país adiado
O país republicano da África Ocidental, que tem a dívida pública "mais alta do Mundo" (FMI), emancipou-se de Portugal em 1973, foi reconhecido em 74, tem 1,8 milhões de habitantes, 80% de desempregados, e é dos mais desnutridos do Mundo, com 69% de guineenses a viver de 1 dólar por dia (88 cêntimos), diz a ONU. Definido pelo FMI, é um país "onde todas as instituições legítimas são penetradas pelo poder e riqueza do comércio ilegal de drogas". Mas é a instabilidade política que espatifa o país adiado: desde a independência, já teve 20 tentativas brutas de golpes de Estado, quatro com mudança sanguínea de regime.
Vinte dias depois, a investigação à intentona segue sem aparente avanço. Mas o presidente apontou: Bubo Na Tchuto, ex-chefe da Marinha, Tchamy Yala, ex-oficial, e ainda Papis Djemé são o trio visível da hidra golpista. Os três estão detidos, diz o presidente. São figuras do narcotráfico: foram presos em abril de 2013 pela agência antidrogas norte-americana DEA, cumpriram cinco anos de prisão nos EUA, mas foram soltos e voltaram à Guiné.
"Se a intenção deles era apenas fazer um golpe de Estado, talvez poderiam ter ajuda de Deus. Mas como queriam matar o presidente, os membros do Governo e inocentes, não tiveram êxito", disse ainda Embaló, apontando que o golpe também meteu militares e paramilitares.
"Nada é novo, foi ato preparado pelos mesmos envolvidos noutras tentativas", disse o chefe das Forças Armadas Biagué Na Ntan. O general surgiu anteontem irritado no quartel de comando do Exército em Bissau. Perante os comandantes perfilados de todas as unidades, batalhões e zonas militares, à frente de jornalistas, decretou: "É uma vergonha que os militares não tenham feito mais, não tenham perseguido todos os autores do ataque". Colérico, revelou: "Vim cá para vos dar uma diretiva de comando de execução obrigatória: busca e apreensão. Quem não cumprir será substituído!".
A viúva vestida de branco
O cheiro de África, como tudo, é diferente, emana da terra aquecida e elevava-se das valas negras das ruas de pó vermelho e jamais nos abandona. Podemos sentir-lhe o peso e a textura colante, é o cheiro de corpos quentes e peixes ressequidos, frutos pútridos, lixos que revoam rasteiros, e cheira a tudo o que atrai e afasta, encanta e nauseia.
É ali, à sombra de um quartinho com janelas sem vidro e telhado chapado, no bairro-colmeia aplanado que está Aua, 45 anos, desvalida viúva do motorista caído Amadu. "El panha tiro", diz Aua, que só fala kriol, um dialeto crocante vagamente baseado no Português. "Panha tiro, tá lixado, tá", completa a turva viúva mulata que há de vestir de branco integral até ao fim da sua nova solidão marital. Ela aponta a fraca condição hospitalar de Bissau: seu marido, depois de tracejado com tiros, sumiu-se na vasta espera da tarde insurgente e no trânsito encarapinhado entre o hospital militar e o Hospital Central Simão Mendes, onde chegou já cadáver. "Ferida muito grave, intestino de fora, sangue muito", diz o tradutor de kriol numa careta, "mas, tratado a tempo, safava-se"
E Graciete tremeluz
Revoltada, a piedosa "não dorme, não come e tem peso de coração", suspira e faz tsk-tsk com a língua quando se lhe pergunta se a família tem sustento. "Na tem" - são quatro filhos menores, mais dois primos e a irmã do falecido que moram todos na apertada pobreza da viúva. Ela só pode trabalhar, diz o sagrado Alcorão, após o luto e mais quatro meses de reserva. Então, tentará vender legumes, malaguetas, cebolas ou limão no mercado teluriano de Cabasera - e ela produz de novo aquele som tsk-tsk, abana lenta a cabeça, põe os olhos cravados no chão.
O funeral de Decker, filho de Graciete, foi católico e sem restrições de covid, a família unida. O corpo, lacrado em caixão, estava irreconhecível, mostram fotos proibidas vazadas no WhatsApp. Graciete não se conforma: precisava de o ver, de o tocar para o chorar e agora embute-se. E desespera: "Ninguém explica, ninguém mostra. Eu nunca me despedirei dele", diz a mãe, que repousa irresolvida na sala da casa sem ele, entre a penumbra, o calor e uma dúzia de silentes, amigos, família, vizinhos solidários que flutuam na sacada da casa, dormem em esteiras ao relento, irmanam-se na dor. E Graciete fica a afagar para sempre o retrato paralisado de Decker, chocada, embaçada, mãos coladas ao filho e o seu choro afónico tremeluz no coração.