Operações de "bandeira falsa" foram conduzidas ao longo da História por governos e organizações que vestiram a pele de cordeiro, transformando em lobo os inimigos e retirando partido das consequências disso. O termo, que remete para o conceito militar de utilizar bandeiras do inimigo, anda na boca dos líderes ocidentais, que acusam Putin de fabricar pretextos para invadir a Ucrânia. E a tensão continua.
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Quatro dias depois de Moscovo ter anunciado uma retirada "parcial" das tropas das regiões próximas da fronteira com a Ucrânia, os exercícios militares conjuntos entre a Rússia e a Bielorrússia, que iam terminar este domingo, foram prolongados face ao "aumento da atividade militar perto das fronteiras e ao agravamento da situação em Donbass" (área que integra as regiões de Luhansk e Donetsk, autoproclamadas repúblicas independentes da Ucrânia controladas por separatistas apoiados pelo Kremlin). Servirão, anunciou o ministro da Defesa bielorrusso, para "garantir uma resposta adequada e uma desescalada dos preparativos militares levados a cabo por pessoas mal-intencionadas".
Enquanto as manobras prosseguem e os bombardeios entre separatistas e exército ucraniano no leste do país fazem crescer temores de ofensiva, o Ocidente continua a dar como certo o risco de invasão russa. O presidente norte-americano disse, na sexta-feira, que os EUA tinham "razões para acreditar" que o Kremlin estava a levar a cabo uma "operação de bandeira falsa" para ter um argumento para invadir os vizinhos. O secretário-geral da NATO, aliança militar transatlântica com Washington à cabeça, tinha dito o mesmo um dia antes: "Estamos preocupados que a Rússia esteja a tentar encenar um pretexto para um ataque armado contra a Ucrânia". E o primeiro-ministro britânico continua a subir o tom: depois de ter descrito o ataque numa creche em Donbass como uma "operação de bandeira falsa" destinada a desacreditar o governo ucraniano e "criar um pretexto para a ação russa", Boris Johnson acusou hoje a Rússia de planear "a maior guerra na Europa desde 1945".
Do lado de Kiev, o presidente Volodymyr Zelensky apelou a "um cessar-fogo imediato", horas depois de, num telefonema com o homólogo francês, ter garantido que não responderia a "provocações" da Rússia na linha de frente com os separatistas e pedido a Macron para expressar a Putin "a disponibilidade da Ucrânia para o diálogo."
Criar manobras para intervir
Numa operação de "bandeira falsa", o autor da agressão mascara-se de um inimigo para criar a impressão de que foi este o causador da atrocidade. O nome da tática, comum nos anos da Guerra Fria, tem origem numa manobra naval, em que um barco usa uma bandeira de outro país para enganar os inimigos.
O que na prática acusam os líder ocidentais é que os russos estão a criar manobras para poderem justificar as suas operações, fabricando situações de perigo e surgindo como heróis e salvadores. A isso chama-se operação de "bandeira falsa", quando o autor da agressão se mascara de um inimigo para criar a impressão de que foi este o causador da atrocidade. O nome da tática, comum nos anos da Guerra Fria, tem origem numa manobra naval, em que um barco usa uma bandeira de outro país para enganar os inimigos.
Embora não haja, por exemplo, qualquer informação que indique que Kiev vai invadir as regiões separatistas a leste, Donetsk começou a retirar milhares de habitantes para a Rússia, de forma a protegê-los de um "iminente ataque" ucraniano. Os vídeos publicados na sexta-feira que mostram os líderes das "repúblicas populares" de Donetsk e Luhansk a pedir que os residentes aceitem ser transferidos para a Rússia para "proteger as suas vidas" tinham sido gravados há pelo menos dois dias, de acordo com os metadados guardados pelo Telegram (uma espécie de WhatsApp com muito mais proteção da comunicação, que retém os dados sobre a hora e data em que um vídeo foi gravado pela primeira vez). Isto quer dizer, contrariamente ao que os dirigentes pró-Rússia alegaram nos vídeos pré-gravados, não tinha surgido nenhuma ameaça naquele dia que motivasse o plano de evacuação, que, na ótica ocidental, foi planeado como parte de uma campanha de desinformação e medo.
Tática usada ao longo da História
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De acordo com Calder Walton, historiador da Universidade de Harvard e autor de vários livros sobre espionagem e serviços de informação, o governo russo recorreu a operações de bandeira falsa no Afeganistão, em 1979, na Hungria, em 1956, e na Checoslováquia em 1968.
Neste último caso, o Kremlin usou os serviços do KGB para criar incidentes que justificassem a intervenção no país, que tentava aplicar reformas sociais-democratas para criar um "socialismo de face humana", que Moscovo via como ameaça à estrutura de todo o bloco soviético. Documentos da KGB entretanto divulgados revelaram que o então líder russo, Leonid Brezhnev, e o chefe do serviço de informações, Yuri Andropov, recorreram a homens que não eram formalmente ligados à agência mas que operavam de forma coordenada para fabricarem incidentes que manchassem a reputação do governo do país e justificassem o envio do Exército Vermelho, escrevendo assim um ponto final nas reformas e impondo à Checoslováquia um "líder ligado aos soviéticos."
Outro exemplo clássico desta artimanha é o incidente de Gleiwitz, que marcou o início da Segunda Guerra Mundial. Em 1939, Hitler planeava invadir a Polónia, mas precisava de uma razão sólida que justificasse a ação. Passou a espalhar falsa propaganda sobre agressões a alemães em cidades polacas e, sob a coordenação da SS (organização paramilitar ligada ao Partido Nazi), implementou a Operação Himmler, que mais não foi do que uma série de falsos ataques na fronteira entre os dois países, que teriam como alvos instalações alemãs - um deles foi a torre de transmissão de rádio de Gleiwitz, tomada por sete nazis fazendo-se passar por soldados polacos, que precedeu a invasão da Alemanha na Polónia.
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