Morrer no carro engolido pela água: as histórias de sufoco (e de esperança) que chegam de Espanha
Parecem carros de brincar os que vemos empilhados nas imagens que nos chegam do leste de Espanha, mas são bem reais. Como são reais as pessoas que morreram dentro deles. À medida que o número de mortes aumenta, chegam-nos os relatos de quem sobreviveu e viu morrer.
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Histórias de tragédias pessoais vão emergindo à medida que o tempo passa e se descobrem mais corpos perdidos nas enchentes. O temporal que se abateu sobre o leste de Espanha na terça-feira, e que continua a assolar algumas regiões do país, provocou, até agora, mais de 100 mortos, a maioria na região de Valência, e um número indeterminado, porém elevado, de desaparecidos. Centenas de carros arrastados e empilhados uns sobre os outros com a força da água escondem corpos de vítimas desta que já é descrita pela Imprensa espanhola como uma das maiores catástrofes naturais da História do país, que já levou as autoridades governativas a anunciarem um plano económico de 250 milhões de euros para aliviar as consequências da DANA (depressão isolada em níveis altos - saiba aqui o que é). Os jornais, televisões e agências de notícias espanholas, em reportagem no local, têm feito o levantamento dos casos, dando nome e história às vítimas da calamidade, onde ainda se encontra esperança. Aqui ficam alguns:
Mãe e bebé morrem no carro: "Vi-as a pedir ajuda no tejadilho"
Lourdes María García, 34 anos, e a filha bebé, Angeline, de três meses, subiram ao tejadilho do carro, preso nas enchentes que retiveram, na terça-feira à noite, centenas de veículos na periferia de Valença. Fora do carro, empurrado pela força da água e do lamaçal, Antonio Tarazona, marido e pai, viu-as ao longe, aflitas, a pedir ajuda. Veio a saber-se mais tarde que Lourdes, nascida na Venezuela e radicada em Valência há cinco anos, fez, naquele momento, aquela que seria a sua última chamada telefónica. Ligou a uma amiga, disse-lhe que tentaria resistir o máximo que pudesse e pediu-lhe que cuidasse dos outros dois filhos, de 10 e 13 anos, conta o "El Mundo".
Vinham os três de Paiporta, na periferia, até Valência, quando foram apanhados pelas cheias. Tentaram chegar a solo firme, mas acabaram impedidos pela água. “O carro começou a flutuar. Conseguimos prendê-lo numa placa de sinalização (...) e saí do carro. A Lourdes e o bebé ficaram lá. Estava ancorado, mas a corrente começou a arrastá-lo para baixo e a última coisa que vi foi elas a pedirem ajuda no tejadilho”, partilhou Antonio, ao "El País", depois de ter sido resgatado pelas equipas de socorro. A notícia que não queria chegou várias horas mais tarde, já na quarta-feira: a Guardia Civil confirmou que os corpos da mulher e da bebé, que a família procurava desde terça-feira à noite, tinham sido encontrados dentro do carro.
Encontra o corpo do pai dentro do carro
"O choro desconsolado de um homem quebrou, esta quinta-feira de manhã, o silêncio de um troço da A-3, autoestrada em Valência, que está bloqueada desde terça-feira, com dezenas de carros e camiões retidos". A descrição é feita pelo "El País", que, em reportagem no local, foi encontrar um homem, que não identifica pelo nome, acompanhado por dois amigos, a chorar copiosamente. Tinha acabado de descobrir que o pai, de 83 anos, jazia morto num dos veículos engolidos pela água. Não pôde sequer chegar-se perto: a Unidade Militar de Emergência e a Guardia Civil estão a trabalhar para pôr ordem no caos, por isso a circulação é restrita e obrigou o homem e os outros dois que o amparavam a entrar num jipe cheio de lama, seguindo caminho numa estrada secundária.
Seis idosos morreram num lar
Seis das mais de 100 vítimas mortais do temporal viviam numa residência para idosos em Paiporta, uma das localidades mais afetadas pelas chuvas. Uma tromba de água surpreendeu os 120 utentes do lar quando jantavam, eram 20 horas de terça-feira. Os funcionários conseguiram levar quase todos os idosos para o primeiro andar, mas seis acabaram por morrer, relata a Europa Press, que divulgou imagens dos momentos angustiantes que se viveram quando as cheias irromperam pelo espaço, ultrapassando um metro de altura.
24 horas de angústia com final feliz
No meio da catástrofe, a esperança. Elena entrou em direto num espaço noticioso do canal Antena 3, fazendo um apelo público por informações acerca dos filhos, de quem não tinha notícias há 24 horas. Os jovens trabalham num centro comercial em Alfafar, tal como a namorada de um deles, e estavam lá no momento em que as enchentes começaram a subir de nível, na terça-feira. "A minha nora disse-me que estava no segundo piso do KFC e que os meus filhos estavam no telhado do Taco Bell, mas agora nenhum dos telemóveis dá sinal", disse Elena, muito nervosa, relatando na quarta-feira, em direto, não estar a conseguir contactar com nenhum dos filhos.
Na sequência do pedido de ajuda, a estação espanhola foi contactada, por e-mail, por uma mulher que pedia que Elena fosse informada de que os seus filhos estavam são e salvos. "Os rapazes estavam retidos com o meu marido. Um deles foi ao KFC buscar a menina, saíram a pé esta manhã, não tinham bateria no telemóvel. De manhã, estavam os três bem", informou.
Elena foi imediatamente contactada e recebeu a notícia com enorme alívio e alegria, escreve a Antena 3.
Passou horas no telhado de uma estação de serviço
Muito perturbada com o que vivera, Rebeca contou ao "La Verdad" tudo o que viveu na terça-feira à noite. “Refugiei-me no telhado de uma estação de serviço em Massanassa. Estava no carro, mas decidi sair dele. Saí pela janela. Foi apenas uma questão de minutos até que veio uma onda e nos obrigou a correr”, contou, muito nervosa e tensa. “Passámos por uma vedação e cerca de 30 pessoas subiram para o telhado. Houve quem tenha ficado preso aos carros e passado horas lá dentro com água até ao pescoço", recorda, relatando que, quando a água finalmente baixou, desceram todos "por um poste de eletricidade". "Alguns carros levaram-nos até à entrada de Valência”, contou, já em segurança, a partir da casa de uma amiga.
“Fizemos uma corrente humana para que todas as pessoas pudessem subir”
Apanhado pelas cheias, o valenciano Rafa Muñoz decidiu deixar o carro e refugiar-se, a par de muitas outras pessoas, numa ponte perto da autoestrada Pista de Silla, nos arredores de Valência. “Não havia escada para subir, só lama. Fizemos uma corrente humana para que as pessoas pudessem subir, porque era muito alto. No final, havia cerca de 500 pessoas”, contou Rafa, que começou a descer da ponte por volta das 5.45 horas da manhã de quarta-feira.