Novembro é um mês marcado a cores doces e acres no calendário da aviação mundial. Completam-se 20 anos do regresso do Concorde aos céus, após 15 meses de suspensão, para uma curta segunda vida das viagens supersónicas de passageiros, que acabariam dois anos depois, em 2003.
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Em novembro de 2001, o Concorde voltava a voar, 15 meses depois de um acidente em Paris. Subiu 18 quilómetros acima do nível do mar e acelerou até aos 2149 km/hora, para cruzar o Atlântico de Londres para Nova Iorque, em pouco mais de três horas. Começava a segunda, mas curta, vida do icónico avião supersónico de passageiros.
O Concorde nasceu de um casamento entre a britânica British Aircraft Corporation (BAC) e a francesa Aérospatiale. Concebido nos anos de 1960, o projeto anglo-francês, veria a luz do dia em 1976 para voos de demonstração. Fez o primeiro voo de carreira em 1976, entre Paris e o Rio de Janeiro, inaugurando a era das viagens supersónicas. Um nicho de mercado, um luxo destinado a poucos, os que podiam pagar cerca de 9 mil euros para cruzar o Atlântico.
"Tinha vinte anos, morava em Londres, ia regularmente para Nova Iorque e achava que os voos supersónicos existiriam para sempre". A expressão é de Shoichi Iwashita. Há 20 anos era um dos privilegiados que voava no Concorde, da Europa para a América.
"O mais incrível era "voltar no tempo", uma vez que partíamos da Europa pela manhã, mas, por voar contra o fuso e a uma velocidade maior do que o movimento de rotação da Terra, chegávamos sempre antes do horário da partida", recordou ao "Jornal de Notícias". Com quatro potentes motores, o Concorde viajava à velocidade de cruzeiro de 2158 km/h, quase duas vezes a velocidade do som (Mach 2), mais do dobro dos 900 km/h dos aviões comuns, e acima dos 1660 km/h a que o Planeta azul rodopia sobre si próprio. "Em Londres, o voo saía sempre às 10.30 horas da manhã e aterrava em Nova Iorque às 9 horas da manhã do mesmo dia", acrescentou.
"O voo era como qualquer outro. Só conseguia sentir a altitude - de 60 mil pés, onde as turbulências são inexistentes - quando olhava pelas janelas pequenas e via a Terra um pouco curvada e o céu já um pouco escuro. Era como se estivéssemos mais próximos do espaço", contou Shoichi.
José Correia Guedes foi piloto durante 38 anos. Aposentado da TAP, continua um apaixonado e especialista em aviação. "Acho que não subia tão alto, que andava pelos 50 ou 55 mil pés. A essa altitude o ar é mais fino e é mais fácil atingir a velocidade supersónica", diz o ex-piloto. "Todo o avião, com aquela asa e aquele bico, foi concebido para a velocidade supersónica", explica.
O voo "era suave", lembra Shoichi. "A única forma de se saber que atingíamos a velocidade supersónica era o mostrador dentro da aeronave, que comunicava quando o Concorde atingia a velocidade Mach 2", recordou Shoichi. Filho de uma baiana e um japonês, vive em São Paulo, no Brasil natal da mãe. Tem 42 anos, estudou design e administração de empresas, mas fez da paixão pelas viagens, há nove anos, uma forma de vida, cujas experiências relata no portal Simonde.
O acidente que acabou com a primeira vida do Concorde
A 25 de julho de 2000, um Concorde levantou numa bola de fogo do aeroporto Charles de Gaulle, em Paris, França. O acidente causou a morte de 109 pessoas, 100 passageiros e nove tripulantes, e encostou toda a frota supersónica, durante mais de um ano.
A investigação apurou que o acidente foi causado por um pedaço de metal de outro aparelho, que caíra para a pista cinco minutos antes da descolagem do supersónico. Cerca de 15 meses depois do acidente, o Concorde regressou, em novembro de 2001. Mas o Mundo estava mudado. As Torres Gémeas, em Nova Iorque, esboroaram-se atingidas por dois aviões num atentado da al-Qaeda, em setembro, que matou quase três mil pessoas. Instalou-se o medo de voar.
"O Concorde estava acabado Só continuou a voar porque a British e a Air France investiram muito dinheiro", argumenta José Correia Gomes, convencido de que o atentado de Nova Iorque e o acidente de Paris não foram determinantes no fim da era do transporte supersónico de passageiros. Em 2003, ainda a investigação ao acidente de Paris estava em curso e já o Concorde estava a encostar, de vez. Pode ser visto, atualmente, em alguns museus, como em Le Bourget, Paris, Heathrow, Londres, ou Seattle, nos EUA.
A principal qualidade do Concorde, o voo supersónico, era também um óbice. "O boom supersónico era um problema. Foi logo proibido de voar sobre a Europa", comenta Correia Guedes. "Estava comercialmente limitado pelo boom supersónico, condenado à nascença porque praticamente só podia voar no Atlântico Norte, e mesmo assim havia queixas quando passava nos Açores", explica o ex-piloto, reformado há 15 anos, que publicou recentemente o livro "Carlos Bleck - O herói esquecido da aviação portuguesa", na esteira do sucesso de "O Aviador", publicado em 2017 e que voou até à 5.ª edição.
Nasceu com dois problemas
O outro problema do Concorde era o consumo, de cerca de 25 mil litros de combustível por hora. O projeto foi desenvolvido nos anos 60, quando o preço do petróleo era muito baixo, e conheceu a luz do dia no início dos anos 70, em plena crise petrolífera. Das 100 encomendas, nenhuma vingou. Apenas a British Airways e Air France adquiriram aeronaves. Cinco em Inglaterra, sete em França, das 20 que foram produzidas, incluindo os protótipos.
"Para descolar, gastava uma quantidade absurda de combustível. E para entrar em modo supersónico também", lembra Correia Guedes. "Hoje em dia, em que a preocupação é acabar com o CO2, e os aviões são altamente poluidores, o Concorde não fazia sentido", acrescenta, atento ao projeto da empresa norte-americana "Boom Sonic", que diz estar a fabricar o "novo Concorde", um avião supersónico com 50 lugares, para ligar os EUA à Ásia. A United Airlines já encomendou 100 destas aeronaves, com data prevista de entrega para 2025.
"Estou muito curioso. Se conseguirem eliminar o estrondo supersónico, será um grande avanço", disse José Correia Guedes, admitindo que com as novas tecnologias de fabrico de motores, cada vez mais potentes e económicos, a promessa de regresso do Concorde pode ser viável. "Se pensarmos que hoje as viagens para o espaço estão em vias de se tornar uma realidade, os aviões supersónicos poderiam atender a um nicho de mercado específico, o das viagens de alto luxo. Mas, não sei como seria comunicar isso num mundo cada vez mais atento para a sustentabilidade e a preservação do meio ambiente, uma vez que esses aviões - e também as naves espaciais - queimam uma quantidade estratosférica de combustíveis fósseis a cada viagem", argumenta Soichi Iwaichita.
Avião de luxo, mas "não era muito confortável"
José Correia Guedes nunca voou um Concorde, mas trabalhou com um dos pilotos de testes daquela aeronave, o francês André Turcat, durante a investigação ao acidente da TAP, no Funchal, em 1975. "Conheço bem o avião. Só tinha primeira classe, mas não era confortável. Eu, que não sou alto, não conseguia andar muito bem de pé lá dentro", recorda, desconfiado de um regresso supersónico.
"O que interessa agora é viajar cada vez mais barato. As viagens low cost vieram para ficar", diz o ex-comandante da TAP. O fenómeno começou nos anos 80, com a Laker Airways, em Inglaterra, a primeira companhia a vender viagens de baixo custo, mas seria noutra ilha da Grã-Bretanha que os voos baratos levantariam voo de vez, no dealbar deste novo milénio, atingindo a velocidade de cruzeiro no início da segunda década do século XXI.
A Ryanair, fundada em 1984, na Irlanda, democratizou os voos com uma política agressiva de bilhetes a baixo custo, impulsionando a recuperação das viagens após a quebra de 2001 a 2003.
Segundo dados do World Data Bank, em 1976, quando o Concorde sulcou os céus pela primeira vez, foram transportados 471 milhões passageiros em todo o Mundo. Em 2000, no início da segunda vida dos voos supersónicos, 1674 milhões de pessoas viajaram de avião. Número que caiu para 1627 milhões em 2002, no primeiro do ano do medo do terrorismo. Em 2003 iniciou-se a recuperação, que escalou a partir de 2004, com a Ryanair a servir como uma espécie de companhia de bandeira do novo mundo da aviação. Em 2010, foram transportados 2600 milhões de passageiros, número que quase duplicou para 4400 milhões em 2019, quando a pandemia meteu um travão a fundo no Mundo.
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Num mundo que voltava a viajar de avião, o luxo e a comodidade de atravessar o Atlântico em cerca de três horas parecem agora secundários. O importante é ir, chegar ao destino, ainda que seja preciso fazer uma ou duas escalas. O Concorde é demasiado rápido, luxuoso e caro. O avião que viajava no tempo pousou em terra pela última vez em 2003. O voo terminou em Filton, local onde tinha sido fabricada a primeira versão inglesa do Concord(e), o segundo protótipo do avião do futuro, o BAC002, que descolou pela primeira vez em abril de 1969. Um mês antes, o protótipo 001, fabricado em Toulouse, França, tinha voado pela primeira vez.
De cabeleireira a primeira mulher a pilotar um Concorde
Barbara Harmer morreu nova, com 57 anos, em 2011. Partiu "pacificamente", segundo a família, em casa, em Chichester, no Reino Unido, mas teve uma vida rica e agitada. Aos 15 anos deixou a escola para seguir uma carreira de cabeleireira. Aos 20 anos, cortou radicalmente com a vida anterior e começou a trabalhar como controladora aérea no aeroporto londrino de Gatwick, enquanto estudava Direito. Com os aviões ali tão perto, a paixão pela aviação levou-a a fazer o curso de piloto, que completou em 1982, quase a fazer 29 anos. Quando estava a trabalhar na British Caledonian, uma companhia local britânica, a empresa foi comprada pela British Aeronautics (BAC), o braço inglês do consórcio do Concorde. Entrou numa companhia com 3 500 pilotos, apenas seis mulheres, e fez parte do grupo restrito que entrou num programa de treino intensivo de seis meses, em 1992, para se habilitar a pilotar um Concorde.
A 25 de março de 1993, Barbara fez história, como a primeira mulher a pilotar um Concorde. Meses mais tarde, elevou a fasquia, ao comandar um voo entre Londres e Nova Iorque.
Dos 3500 pilotos da (BAC), apenas 37 obtiveram as insígnias para pilotar o Concorde, entre estes Barbara Harmer, que era apenas uma entre as 40 mulheres nos quadros de pilotos da companhia, nos anos 1990.
Ao longo da história, apenas três mulheres pilotaram o Concorde. Além de Bárbara, as francesas Jacqueline Auriol, a primeira mulher a trabalhar como piloto de testes do Concorde, e Béatrice Vialle, a segunda mulher a pilotar o Concorde em rotas regulares, no caso entre Paris e Nova Iorque.
Pormenores
Corvo branco - O perfil alongado do aparelho, concebido para reduzir atrito e atingir velocidade supersónica, retirava visibilidade aos pilotos. Para resolver o problema, os engenheiros engendraram o icónico bico móvel, que descia quando o avião estava a levantar ou pousar, dando-lhe aquele ar ameaçador de corvo, em branco, e permitindo aos pilotos a visibilidade necessária para levantar e aterrar.
Motores de sobrecombustão - Para atingir as velocidades necessárias para descolar e entrar em modo supersónico, o Concorde tinha motores de sobrecombustão. "Depois da combustão, os gases de escape, que saem a altíssima velocidade, são confrontados com uma segunda ignição, com uma nova injeção de combustível", explica José Correia Guedes.
Discórdia com o nome - Concorde significa concórdia, mas o nome do projeto foi motivo de discórdia entre ingleses e franceses, entre "Concord", à inglesa, e "Concorde", à francesa. Em 1967, o secretário de Estado de Tecnologia, Tony Benn, resolveu a questão: o "e" no fim significa "excelência", "England" (Inglaterra), "Europa" e "entendimento cordial".
O rival soviético - O Tupolev Tu-144 foi o primeiro avião comercial a superar Mach2, em maio de 1970, menos de dois anos depois de ter efetuado os primeiros testes. Construído pela antiga União Soviética, o primeiro protótipo fez-se aos céus, nos arredores de Moscovo, dois meses antes do Concorde. Considerado o avião comercial mais rápido do Mundo, com uma velocidade máxima estimada de 2500 km/h, chegou ao mercado a 1 de novembro de 1977, mas deixou o transporte de passageiros menos de um ano depois, em junho de 1978, após um segundo acidente.
Ficha Técnica
Comprimento: 61,66 metros.
Envergadura: 25,6 metros.
Altura:12,2 metros.
Peso vazio: 78 700 kg
Peso carregado: 111130 kg
Velocidade máxima: 2 499 km/h
Velocidade de cruzeiro: 2 158 km/h
Alcance: 7 222 km
Teto máximo: 18 300 km (60 mil pés)
Passageiros: 92 a 120
Motores: 4 motores a jato com turbo e pós-combustores, fabricados pela Rolls-Royce/Snecma Olympus
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