A cidade que serviu de tampão à entrada das tropas russas em Kiev começa lentamente a ser reconstruída.
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Atravessar a estrada que chega a Irpin é um prenúncio demasiado duro para imaginar o terror que ali sucedeu, a pouco mais de 20 quilómetros de Kiev. A brutalidade irrompe o olhar e rasga os sentidos. Sufoca. Enquanto o trânsito flui desafogado no alcatrão, na berma jaz um enorme cemitério de carros. Viaturas totalmente carbonizadas, esqueletos incompletos de ferro alaranjado, amontoadas numa vasta pilha de entulho. São carros que nunca conseguiram cruzar aquela estrada. E pertencem a famílias que não conseguiram escapar à morte.
Aquando da invasão russa, Irpin bateu-se pelo país e foi a cidade-tampão que impediu a entrada das tropas do Kremlin na capital da Ucrânia. Durante um mês esteve sob intenso fogo cruzado, viu morrer cerca de 300 civis e foi bombardeada até à exaustão, até que não sobrasse praticamente nada. Mas resistiu. Entrou para a História como a cidade-heroína, símbolo da resistência ucraniana.
Um ano depois, basta percorrer alguns metros em direção ao centro para ver as marcas que a guerra deixou. Estão por toda a parte: nos edifícios destruídos e escurecidos pelo fumo das explosões, nas casas despidas de janelas, nos destroços que permanecem no chão e até nos furos provocados por balas, cravados em sinais de trânsito. Didkovsky Valentine conhece bem aquelas ruas, aquelas estradas. Quando a cidade foi tomada de assalto, a 27 de fevereiro de 2022, o ex-militar de 64 anos juntou-se às forças ucranianas, na linha da frente, para defender a cidade que o acolheu em 1979, quando se mudou de Lviv.
Na mira das tropas russas
De óculos escuros e vestido com uma farda verde-tropa, Didkovsky desenrola o emaranhado novelo que foi aquele sufocante mês do ano passado. "Quando fomos bombardeados, houve muitos mortos e feridos. Depois disso, fui varrer Irpin e Bucha para recolher os corpos. Foi terrível, havia muitos. A maioria eram civis, havia poucos militares. Por isso tivemos de os retirar e levá-los para a morgue para que fossem identificados". Didkovsky viu famílias completas alvejadas nos carros, foi ao aeroporto de Hostomel recuperar as vítimas mortais que resultaram da batalha e ajudou centenas de civis a fugirem através da destruída ponte de Irpin. A bravura do ex-militar chamou a atenção das tropas russas e quase lhe custou a vida. "Uma mulher disse-me que o Serviço de Segurança da Ucrânia tinha entrado na minha casa. Como conheço os rapazes, liguei-lhes e eles disseram-me que ninguém tinha vindo cá. Contei-lhe o que se estava a passar e eles disseram-me: se tiveres uma arma, dispara assim que os vires, mas só para matar. É evidente que eram russos". Os ocupantes não o encontraram, mas explodiram-lhe a casa. Agora, é numa "cidade modular" construída por uma associação humanitária da Polónia que refaz a vida.
Filho morto em casa
Montada no centro de Irpin, junto a um antigo sanatório, a instalação de pré-fabricados aloja cerca de 400 pessoas que perderam a casa após os intensos bombardeamentos. No sossegado jardim repleto de esguios pinheiros, uma mulher passeia os três cães que saltitam alegremente, indiferentes ao ar gélido que se faz sentir durante a manhã. A neve cobre de branco o topo dos carros, mas no interior da "casa" que Maria Kulish divide com outras famílias desde agosto não há frio. Ao fundo do corredor, a mulher de 80 anos prepara o pequeno-almoço na cozinha partilhada e enquanto a sopa aquece no micro-ondas, senta-se num comprido banco de madeira para trazer à memória o dia mais difícil que guarda da guerra. "O meu filho morreu queimado quando o nosso apartamento ardeu". As palavras surgem como flechas e desarmam todos os presentes. Apesar de conhecer a história, uma das "vizinhas" não contém as lágrimas enquanto ouve a lembrança insuportável de Maria.
Durante o mês que durou a ocupação russa em Irpin, a idosa permaneceu na cidade com o filho. Era na cave que se refugiavam para escapar aos bombardeamentos, mas uma noite o pior aconteceu: "Eram duas da manhã. Não saímos de casa, ficámos sentados até descermos para a cave. Talvez tenha perdido a consciência ou adormecido, e quando acordei, o meu apartamento estava a arder", recorda. Maria sobreviveu sem água, gás ou aquecimento numa casa sem porta e com as janelas partidas, até que chegou o dia 29 de março. Saiu de casa com a roupa que trazia no corpo. "Nesse dia, o nosso tanque chegou e levou-nos embora. Eu estava esganada de fome. Os nossos militares alimentaram-nos, deram-nos chá. Receberam as rações e deram-nos o melhor".
A Cruz Vermelha levou-a para Kiev, onde ficou apenas um mês, e regressou a Irpin para casa de amigos. A filha e a neta regressaram da Polónia e vivem as três juntas na "cidade modular" com outros refugiados. Enquanto Maria toma o pequeno-almoço, a neta Marina Savelieva mira-a com carinho. Não quer voltar a deixar a avó sozinha. Um ano depois do início, a guerra deixa cicatrizes impossíveis de sarar, mas Irpin tenta reerguer-se. Por todo o lado, as obras de reconstrução avançam com esperança no futuro. A mesma esperança que alguém pintou em forma de girassol, o símbolo da Ucrânia, nos carros carbonizados à entrada da cidade.