Ucrânia teme cilada militar e recusa desminagem de portos para escoar cereais. Bloqueio poderá reter até 75 milhões de toneladas no outono. Ursula Von der Leyen denuncia "arsenal de terror" russo.
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A Turquia prontifica-se a executar um plano internacional de escoamento dos cereais da Rússia e da Ucrânia. Moscovo concorda, mas Kiev insiste que o invasor anda já a fazer charme diplomático com o trigo roubado dos silos ucranianos. Os próprios pró-russos que controlam parte de Zaporijia admitem que estão a enviar cereais para o Médio Oriente. Os turcos oferecem-se para a retoma e envio das exportações e o Kremlin pede a desminagem do porto de Odessa, que Kiev não aceita, por desconfiar de uma cilada militar, que tornaria vulnerável o bastião costeiro do Mar Negro. Desde Bruxelas, a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, diz que os alimentos se tornaram num "arsenal de terror" russo.
Os chefes da diplomacia de Ancara e de Moscovo reuniram-se esta quarta-feira, na capital política da Turquia, e acertaram um plano de distribuição internacional de cereais, o qual, logo à partida, reivindica o levantamento de sanções às exportações agrícolas russas.
"Estamos a falar de um mecanismo a ser desenvolvido entre a ONU, a Rússia, a Ucrânia e a Turquia", disse o ministro turco, Mevlut Cavusoglu, em conferência de imprensa com o homólogo russo. Além da desminagem de portos ucranianos, Cavusoglu disse que as condições da Rússia também devem ser cumpridas.
"Se temos de abrir o mercado internacional ucraniano, pensamos que é legítimo remover os obstáculos às exportações russas", disse o ministro dos Negócios Estrangeiros da Turquia. "A Rússia está disposta a garantir, em cooperação com a Turquia, a segurança dos navios com cereais que zarpam dos portos ucranianos", atalhou o ministro dos Negócios Estrangeiros russo, Serguei Lavrov.
Odessa de atalaia
Ao pedido de desminagem dos portos, designadamente do de Odessa, Cavusoglu e Lavrov levaram resposta pronta de Kiev: a Ucrânia recusa retirar as minas para a retoma das exportações, com o argumento de que os russos iam aproveitar para lançar uma ofensiva marítima à cidade. "A frota russa do Mar Negro fingiria uma retirada para a Crimeia anexada. Mas, assim que libertássemos o acesso ao porto de Odessa, eles apareceriam lá imediatamente", considera o porta-voz da administração regional, Serguéi Brachuk.
Kiev acusa o Kremlin de tentar inverter o ónus da crise alimentar e insiste que a culpa é da invasão russa e não das sanções contra Moscovo. O presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, alerta que a quantidade de cereais bloqueados pela guerra pode atingir, no próximo outono, 75 milhões de toneladas.
Atualmente, estão bloqueadas entre 20 e 25 milhões de toneladas. Antes da guerra, a Ucrânia estava perto de se tornar no terceiro maior exportador mundial de trigo e representava metade do comércio mundial de sementes e óleo de girassol. As exportações ucranianas representavam 12% do trigo mundial, 13% do milho e 50% do óleo de girassol.
Safra recorde
Na campanha agrícola de 2021, a Ucrânia teve uma colheita recorde de 29,5 milhões de toneladas de trigo e colocou-se na oitava posição entre os maiores produtores mundiais (estimativa total de 794 milhões de toneladas para 2022). Nada que a Rússia valorize: o Kremlin faz contas diferentes, diz que "há exagero" da importância da produção ucraniana e minimiza o impacto da guerra no aumento do preço dos cereais.
"Não temos que exagerar a importância das reservas de cereais ucranianos nos mercados internacionais. É uma percentagem muito pequena para ter um impacto significativo na crise alimentar mundial, que já começou", declarou o porta-voz do Kremlin, Dmitri Peskov.
Ainda esta quarta-feira, em Ancara, Sergei Lavrov também desdenhou as estatísticas internacionais: "Demos muita atenção ao problema da exportação de cereais ucranianos, que os nossos colegas ocidentais e os ucranianos tentam apresentar como uma crise universal, quando esses cereais representam menos de 1% da produção mundial de trigo e outros cereais", disse o ministro russo dos Negócios Estrangeiros.
"Saque ilegal"
Entretanto, Moscovo anuncia que planeia retirar esta semana os cereais ucranianos do porto ocupado de Berdyansk (sul), declarou Vladimir Rogov, membro da Administração Civil-Militar pró-russa da região de Zaporijia.
"Está tudo pronto para o envio. Os primeiros carregamentos provavelmente serão dos nossos cereais, que na verdade são muito abundantes, todos os silos estão cheios, precisamos esvaziá-los para carregar a colheita fresca, pois a nossa época de colheita começará numa questão de semanas", disse Rogov à agência de notícias russa TASS.
A situação é classificada por Kiev como ilegal e como um saque.
Rogov assumiu a apropriação do cereal ucraniano e acrescentou que "o despacho dos primeiros navios está previsto para esta semana", desde o porto de Berdyansk, nas margens do Mar de Azov e vizinho do porto ocupado de Mariupol.
Por sua vez, o vice-chefe da Administração Militar-Civil pró-russa de Zaporijia, Andrei Trofimov, disse à agência noticiosa russa Interfax que a região recebeu comboios de mercadorias da Rússia para transportar produtos dos territórios ocupados.
Ponte terrestre
As autoridades pró-Rússia confirmaram, entretanto, a entrada de dois barcos russos no porto de Mariupol, ocupado pela forças de Moscovo, para levar aço da Ucrânia para a Rússia, noticiou a agência estatal russa TASS.
Na segunda-feira, um barco russo retirou de Mariupol, no sudeste da Ucrânia, 2500 toneladas de aço, que foram transportadas para a região russa de Rostov.
As autoridades ucranianas consideraram estas operações como saques ilegais.
O controlo da Rússia sobre o Mar de Azov (Kherson, Zaporijia e Donetsk), incluindo o porto de Mariupol, permite a Moscovo construir uma ponte terrestre para ligar o território russo à península da Crimeia, que ocupou e anexou em 2014.