Em causa documento elaborado pelo ICNF que iria travar construção em grande parte das regiões Norte e Centro. Autarcas criticam o facto de não terem sido ouvidos e falam em desconhecimento do território.
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A Carta de Perigosidade de Incêndio Rural, elaborada pelo Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF) e que entrou em vigor a 28 de março, veio inflamar os ânimos de autarcas do interior do país, pois grande parte dos municípios do Norte, do Centro e do Algarve ficariam impedidos de construir em áreas onde estavam previstas urbanizações e zonas industriais. Face à contestação, o Governo anunciou a sua suspensão até ao fim do ano (ler ficha).
"Ninguém percebe esta loucura", observa Orlando Alves, presidente da Câmara de Montalegre. "Um jovem que queira contrair matrimónio e constituir família deixa de poder construir uma casa", exemplifica, tendo em conta que o nível de perigosidade do território do concelho passou a ser "muito elevado". "Não é assim que se combatem os incêndios. É uma absoluta ignorância. Não se aceita que o ICNF esteja sediado em Lisboa e não tenha relacionamento com o mundo rural".
Jorge Fidalgo, presidente da Comunidade Intermunicipal (CIM) de Trás-os-Montes, também não tem dúvida de que "o mapa vai acelerar o despovoamento, porque, ao impedir investimentos programados, o risco de incêndio é cada vez maior". E contesta a falta de articulação com os municípios. "Se a carta tem de ser integrada nos PDM [planos diretores municipais], os órgãos municipais têm de ser ouvidos", afirma ao JN.
Presidente da Câmara de Vila Real e vice-presidente da Associação Nacional de Municípios Portugueses (ANMP), Rui Santos recorda que a ANMP e o Governo acordaram que a carta por onde os autarcas se deviam orientar era a anterior e não a atual. "Aparecendo um documento estranho, irá dificultar, e muito, os trabalhos de revisão dos PDM que estão mais adiantados e a decorrer." Lamenta, ainda, que não tenha sido explicado como é que a carta foi elaborada dos pontos de vista técnico e científico.
"é uma aberração!"
"Esta carta impede a fixação de gente nos territórios rurais, ao inviabilizar a construção e a instalação de novas unidades agrícolas", acredita Fernando Queiroga, vogal da ANMP e presidente da Câmara de Boticas. E classifica como uma "aberração" não terem sido considerados apenas os incêndios dos últimos dez anos, em vez dos ocorridos entre 1976 e 2018. "Fazemos os nossos PDM com responsabilidade. Um presidente de câmara não gosta que arda uma casa e não são esses senhores que nos vão ensinar isso".
Vice-presidente da CIM Douro, Nuno Gonçalves diz que a carta está mal feita. "Baseou-se em mapas de 2018, onde não foi contemplada a evolução do território. Onde estava mato, hoje está uma vinha", diz. "Quase varria o território a uma zona vermelha, de alta ou muito alta perigosidade".
"O território, quase na totalidade, é considerado zona de alto perigo, onde não é possível construir, nem alavancar os espaços urbanos, pelo que compromete o desenvolvimento e o crescimento", confirma Manoel Batista, presidente da CIM do Alto Minho. "O documento é perigoso por si próprio porque foi construído usando uma escala muito aberta, não permitindo detalhe, o que faz com que não tenha capacidade de análise objetiva".
Emílio Torrão, presidente da CIM da Região de Coimbra, diz que caso a carta não seja revista, o investimento feito em rotas e percursos na natureza ficará "em crise". "O centro de decisão devia passar para as CIM, que podem dar um cariz mais justo e mais equitativo do que cartas feitas por técnicos que nem sequer respeitam a vida normal das populações e da região".
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Áreas mais afetadas
Num mapa onde a cor vermelha predomina, os distritos de Lisboa, Setúbal, Santarém, Beja, Évora e parte de Portalegre são aqueles onde o risco de incêndios rurais é considerado mais baixo (verde e amarelo) pelo ICNF. Todo o Norte e Centro e alguns concelhos do Algarve estão em risco alto e muito alto.
Como foi o cálculo
A avaliação da perigosidade estrutural foi efetuada para cada unidade de terreno, que corresponde a uma célula com 25 metros de lado. Segundo os autarcas, esta carta foi elaborada pela Agência para Gestão Integrada dos Fogos Rurais (AGIF), sem que tenham sido consultados.
Cinco classes
A carta define cinco classes para determinar o risco de incêndios rurais: "muito baixa" (verde), "baixa" (amarelo), "média" (laranja) "alta" (vermelho) e "muito alta" (vermelho-escuro), sendo que, segundo os autarcas, nas zonas a vermelho e vermelho-escuro fica proibida a construção.
Período abrangido
Para estabelecer o nível de perigosidade, o ICNF considerou as áreas ardidas entre 1975 e 2018, à exceção dos incêndios com extensão inferior a cinco hectares. As variáveis consideradas foram o declive, a altitude e o uso e a ocupação do solo.