Falta de acompanhamento devido à pandemia deixa sobreviventes desamparados. Inquérito revela que 90% foram obrigados a interromper ou nem sequer iniciaram reabilitação.
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Faz no dia 8 de novembro um ano que Marco Moreira, de 56 anos, sofreu um acidente vascular cerebral (AVC) que lhe deixou o lado esquerdo do corpo paralisado. Em janeiro, começou a fazer fisioterapia neurológica no Hospital de Penafiel mas, em março, por causa da pandemia, quando já tinha conseguido "dar uns pequenos passos", foi suspensa. A covid está a ter consequências dramáticas na recuperação da maioria destes doentes.
A falta de acompanhamento fê-lo regredir e, só depois de ter voltado aos tratamentos, em julho, é que recuperou alguma mobilidade. "Tive um revés muito grande e ainda hoje me sinto prejudicado. Estava a ser acompanhado por um nutricionista, nunca mais quiseram saber. O médico de família só me telefona para dizer que tem lá a baixa e perguntar se preciso de medicação. Não querem saber de mim, sinto-me abandonado", conta ao JN.
O seu caso é igual ao de muitos doentes que viram os seus tratamentos afetados pela necessidade dos hospitais de darem resposta à covid-19. Em abril, a PT.AVC - União de Sobreviventes, Familiares e Amigos realizou um inquérito junto de 868 sobreviventes. Destes, 91% revelaram ter sido obrigados a interromper os tratamentos ou não tiveram sequer possibilidade de os iniciar.
De acordo com António Conceição, da PT.AVC, desde o desconfinamento, "estava-se a caminhar para uma recuperação" dos tratamentos, que já eram "insuficientes" antes da pandemia. "Neste momento, estamos com sérias reservas em relação ao futuro próximo pelos sinais que já temos recebido. Na segunda-feira, por exemplo, foi notícia que o Hospital Pedro Hispano, em Matosinhos, tinha convertido o ginásio de Medicina Física e Reabilitação numa área para doentes com covid-19. "Tememos que os sobreviventes de AVC sejam novamente das primeiras vítimas da pandemia", alertou, neste Dia Mundial do AVC.
Além dos constrangimentos nos cuidados de saúde, Marco Moreira queixa-se da falta de resposta a nível institucional. O atraso da junta médica impede-o de ter um atestado multiúsos, para acionar o seguro do crédito à habitação, e requerer outros apoios estatais.
"Situações irremediáveis"
Vítor Tedim Cruz, da direção da Sociedade Portuguesa do AVC (SPAVC), explica que "um terço dos doentes com AVC tem défices relevantes" .Cada caso é um caso, mas "há situações irremediáveis" devido às perturbações no tratamento. "Ninguém fica pior por interromper um dia ou dois a fisioterapia. Mas isto faz com que os decisores deixem sempre para depois a reorganização dos serviços de reabilitação", frisa. Na sua opinião, "não vai ser possível manter o modelo antigo" e os serviços de reabilitação vão ter de ser organizados de forma diferente.
"Há uma sobrecarga administrativa em cima de todos os doentes com doenças neurológicas, mas isso já existia antes. Esta pandemia veio colocar isso em xeque", sublinha o responsável, adiantando que essa informação consta maioritariamente dos processos clínicos eletrónicos.
Ricardo Henriques sugere o lançamento de uma "telerreabilitação" que possa ajudar os doentes e familiares em casa. Para o fisiatra, a resposta tem de ser multidisciplinar. E lembra que as famílias estão mais sós e os doentes mais isolados pelas "barreiras físicas e psicológicas" da pandemia.
Identificar sinais
Falta de força num braço, boca ao lado ou dificuldade em falar são os principais sinais e sintomas que podem indicar a ocorrência de um AVC. É importante ligar ao 112 para que estes sinais sejam identificados e a Via Verde acionada para que o tratamento seja o mais adequado e rápido.
Prevenir repetições
Médicos alertam para as faltas na toma dos medicamentos, que podem levar à repetição dos AVC. Por isso, é importante que não sejam descurados pelos centros de saúde.
Isolamento dos doentes
Os doentes que estão a recuperar em unidades de Cuidados Continuados Integrados, em lares ou outras instituições, sempre que vão ao hospital para consulta, têm de cumprir isolamento profilático. O que os deixa mais fragilizados.
Principal causa de morte
O AVC é a principal causa de morte em Portugal. Segundo a SPAVC, uma em cada quatro pessoas irá sofrer um AVC ao longo da vida.